sábado, 9 de fevereiro de 2013

Manuel dos Santos



10 de Fevereiro de 1901 – 18 de Janeiro de 1978


Meu Pai – O Meu Cavaleiro do Apocalipse


Guardo maravilhosas recordações de meu pai. Durante a infância e começo de adolescência, a sua cooperação no meu crescimento passou despercebida. Mas à medida que a minha memória foi amadurecendo, os episódios e aspetos do seu convívio diário connosco, minha mãe e eu, foram adquirindo forma eterna, bem definida e carismática.
Lembro-me que ele punha os meus pezitos em cima dos seus para que mais facilmente os meus passos tomassem elasticidade e segurança. O côncavo da sua mão envolvia os meus calcanhares e os meus dedos inchados pelas frieiras no Inverno. E era o seu calor forte que abrandava a dor e o prurido. À noite, antes de me aconchegar a última manta da cama, colocava numa cadeira a roupa que havia de vestir de manhã, cuidadosamente dobrada, ensinando-me o valor do método e da disciplina.
Meu pai era de poucas palavras. Observava mais do que falava. Era afável com toda a gente e tinha um sentido de justiça muito apurado. Ria pouco mas quando o fazia era por algo que valia uma boa risada. Fora disso, sem ser sorumbático, o seu rosto moreno, de linhas perfeitas, mantinha o seu natural e discreto cavalheirismo.
Cedo me transmitiu o gosto pela bicicleta e quando se persuadiu de que poderia confiar na minha perícia, passámos a dar longos passeios aos domingos, enquanto minha mãe, durante a manhã, confecionava o seu prato preferido: caldeirada de ruivo, o peixe que meu pai mais apreciava.
Adorava cavalos. Na sua juventude, tinha cuidado desses animais numa grande herdade no Alentejo. Comprazia-se no seu porte, na sua elegância e deliciava-se em assistir a uma tourada à portuguesa onde tinha oportunidade de os ver ricamente ajaezados, balançando o corpo e as patas ao som da música. Também não perdia um bom espetáculo de circo.
Eu acompanhava-o. Por vezes, enquanto eu pedalava pelas avenidas, ele sentava-se a uma mesa da esplanada frente ao mar, lendo o jornal.
Minha mãe era católica mas não praticante assídua. Meu pai era indiferente perante as religiões mas respeitava a vontade de minha mãe que insistia para que eu não faltasse à missa dos domingos, pelo menos à do meio-dia, a missa dos grã-finos, muito frequentada pela juventude, elas para serem apreciadas pelos rapazes e mostrarem as suas “toiletes”, eles para admirarem as raparigas e selecionarem a favorita Eu gostava de ir àquela hora porque não havia outra mais tarde.
Acabado o culto, encontrava-me com meu pai no espaçoso largo sobranceiro à praia e, juntos, passeávamos de braço dado até à hora do almoço.
Habitualmente, o fato preferido do meu pai era o “fato-macaco”. Envergava-o todos os dias, de segunda a sábado. Tapava-o do pescoço ao tornozelo e andava sempre besuntado de óleo, pelo seu contacto diário com veículos pesados e ligeiros.
Transformava-se para sair, aos domingos. Envergava um fato de bom corte a que não faltava o colete, a gravata e um alfinete de ouro preso nela. Engraxava meticulosamente os sapatos. Punha a aliança e um outro grosso anel com um brilhante e finalizava o estilo, ajeitando a boina na cabeça, que usava à espanhola. Na cidade, eu só conhecia dois homens que tivessem predileção pelo uso das boinas à moda de Espanha: meu pai e o reitor do liceu, que seria mais tarde, meu professor de Matemática.
Em ocasiões solenes que exigiam vestuário de cerimónia, meu pai substituía a boina pelo chapéu.
Os nossos passeios a pé ou de bicicleta eram sempre memoráveis. Partilhávamos os mesmos gostos e havia cumplicidade nas nossas críticas.
No dia do batizado de um primo meu do qual fui madrinha, resolvemos ir a pé até à aldeia, distanciada três léguas, em vez de nos servirmos do comboio.
Saímos de casa às seis horas. Estava uma deliciosa manhã de verão. Respirava-se uma brisa pura e ouvia-se chilrear a passarada. Uma sensação de liberdade enchia-nos o peito. e os variados aromas da natureza transmitiam-nos uma radiosa alegria e ânsia de fugir à rotina, inspirar a vida. Conforme avançávamos, por matas e pinhais, ríamos do nosso segredo e aventura. E da cara que minha mãe faria quando soubesse, “amiga das suas comodidades”, como ela se orgulhava de ser.
Em pleno descampado, com os campos de arrozais ladeando-nos e a ponte da linha férrea atravessada sobre os vastos lençóis de água e pequenos arbustos, concluímos que nos havíamos perdido e não havia alma viva que nos indicasse o caminho.
A aldeia avistava-se à nossa direita. Seguir o trajeto da ponte parecia encurtar a distância. Contornar o gigantesco círculo, debruado por um extenso carreiro de areia, era cansativo e demorado mas, contudo, mais seguro.
Passados uns minutos, chegámos a uma casa amarela, de uma só porta e janela. Um homem deu-nos a informação:
- IH! Ih!...Hi!...
Antes que nos explicasse o melhor procedimento, uma composição de duas carruagens e alguns vagões de mercadorias passou cadenciadamente.
- Era naquele que deviam ir se quisessem chegar a tempo da cerimónia…
- Podemos ir pelos campos de arroz, seguindo a ponte?
A ideia fora minha. Meu pai que era de desafios, e eu, que os adorava, insistimos.
O homem engasgou-se na própria saliva e sorriu irónico.
- Se tiverem cuidado e virem onde pôr os pés!
Não descubro palavras para descrever a odisseia que foi a travessia daquela manhã, rodeados por um mar imenso de água estagnada e ervas espessas. Não tínhamos onde apoiar a sola dos sapatos e os diminutos retalhos secos eram feitos de terra enlameada e movediça.
- O homem vai chamar-nos parvos! – preocupou-se meu pai.
- Ora! – disse eu –Não é uma maravilha?
E rimo-nos.
Chegámos. Aguardava-nos uma multidão de gente barulhenta e um sacerdote pior que uma barata, pois não podia iniciar o ritual religioso sem a personagem principal.
Ao passarmos pela casa de minha tia, ela teve de limpar e passar a ferro os nossos fatos e proporcionar-nos um banho que apagou o nosso estado miserável de esfomeados, sujos e cheios de calor.
Enquanto o meu pai aparava as reprimendas da cunhada, eu cruzava com o seu o meu olhar, disfarçando a vontade que tínhamos de considerar tudo aquilo uma grande piada que na hora do banquete, divertiu todos os presentes.
Peripécias como estas experimentámos em conjunto dezenas de vezes.
Lembro-me do nosso passeio ao Cabo Mondego. Subíamos de bicicleta e em fila indiana, a estrada marginal, rematada nas margens por tufos de areia e raízes. Do lado esquerdo, o oceano e alguns rochedos e do lado direito campos de lavoura. Dum e doutro, as ribanceiras eram abismais.
De repente, senti um impercetível toque na roda da retaguarda. Como não acusara dano, continuei a pedalar até que um vago pressentimento me obrigou a olhar para trás. Não vi o meu pai. Ao tocar com a sua bicicleta na minha, desequilibrara-se e rebolara por ali abaixo.
Mesmo assim, prosseguimos viagem, depois de uns metros adiante, o meu pai ter aproveitado um atalho batido pelos carros de bois no seu percurso para a serra.
Quatro raparigas e um rapaz foram os netos que eu lhe dei e ele teve a alegria de acompanhar até ao seu desaparecimento. Cinco endiabradas criaturas com quem ele se dividia e se zangava pelas inevitáveis tropelias.
Era muito raro haver desavenças entre o casal. Quando tal acontecia, meu pai saía a dar uma volta. Regressava sempre com um presente para a minha mãe. Se a questão entre eles coincidia com o tempo dos festejos em honra dos santos populares, era certo e sabido que as ofertas provinham das barracas das feiras, dos sorteios das rifas em que meu pai era bafejado pela sorte.
Companheiro de diversão, era ele quem dava o primeiro impulso ao baloiço, no parque reservado às crianças, no jardim municipal; quem me conduzia nos carros de choque ou me segurava nos carrocéis, “montanhas russas”! e outros locais de diversão que apareciam nas romarias.
Tenho saudades desse tempo, da companhia protetora que desde muito pequena me ensinou os sãos princípios da higiene, do cumprimento do dever, do sentido da responsabilidade, da obediência às regras, uma das quais, a pontualidade e repúdio da mentira.
Penso, nesta etapa da minha vida, que um dia, os nossos espíritos “passearão”, lado a lado, na dimensão universal que tanto nos unia.
Até esse momento do nosso reencontro, estás sempre comigo e é à tua memória que solicito auxílio quando necessito e tu nunca me faltaste, mesmo nesta hora em que te recordo e em vez de chorar, sinto extrema leveza e paz, tendo a certeza da tua presença invisível.


2 comentários:

  1. Que saudades avô! As recordações continuam tão vivas na minha memória. Que saudades de te ouvir chamar como só tu me chamavas: "miguinha". Sinto tanto a tua falta e também sinto que minha vida teria sido tão diferente se não me tivesses faltado tão cedo... Te ADORO avô!

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    1. Tenho a certeza absoluta de que teria sido outro o teu caminho se o avô fosse vivo. Diferente, o destino de todos nós. Sempre me capacitei disso. Ele, com a avó, eram baluartes. Mas, mal ou bem, todos vós seguistes o traçado enigmático das vossas existências e aprendestes com as surpresas que, se vos trouxe tristezas e desilusões, também vos premiou com alegrias. A vida é feita de triunfos e perdas. Não te deves queixar, pois tudo o que conquistaste, a ti o deves unicamente. Os atropelos que aparecem pelo meio também se devem às tuas escolhas. Todavia, podes estar certa de que o avô te protege, de cada vez que o teu pensamento se cruzar com ele. Estará sempre contigo, como sempre esteve. Aliás, ele aproxima-se sempre de cada vez que a melancolia e a desilusão nos assaltam. O avô partiu. Está numa dimensão de mais sabedoria. Sabe o que nós ainda não sabemos. Vivamos como se ele estivesse sempre connosco, com a sua serenidade, a sua figura no canto do sofá, a sua paciência. Eu sei como ele vos amava! E vos ama. Um amor feito de proteção e carinho.

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