sexta-feira, 17 de março de 2017

O MEU PAI


19 de Março é um dia para acentuar a figura daquele que, para além de me dar o ser, me ajudou durante quarenta anos, a desenvolver em mim a planta que ele, com a minha mãe, lançou no mundo, numa época em que a moral era a pauta da família e o respeito e a obediência à autoridade progenitora, era um pelouro destinado a valorizar a sociedade.
Habituei-me a reconhecer o meu pai, ainda garota de colo, quando ele envolvia os meus minúsculos pés e mãos no côncavo das suas mãos musculosas e fortes.
Homem de acção mas de poucas palavras, era ele que me deitava, não sem antes me ensinar a escolher a roupa do dia seguinte e, com meticulosa sabedoria, a ordenava numa cadeira.
Quando os meus movimentos se tornaram autónomos, esperava o meu pai à hora do almoço. observando-o da janela. Ele assomava ao fundo da rua, no seu fato de macaco enodoado de óleo, a boina enterrada na cabeça. As mangas arregaçadas denunciavam uns braços másculos, morenos do sol de verão. No espaço de pouco mais que meia hora, almoçava paulatinamente e do mesmo modo repousado, descascava a maçã ou a laranja que não dispensava nunca.
Os meus pais amavam-se muito e constatar isso, fazia-me feliz.
Aos quatro anos, aprendi a andar de bicicleta. Numa certa zona da cidade, frente à foz do rio Mondego, exercitava-me nos fins de tarde, alugando também para ele um velocípede muito maior do que o meu, que parecia um brinquedo. Daí que o ciclismo fosse o desporto preferido ao longo da minha vida.
Os domingos eram dias especiais para nós. Por exigência materna, eu ia à missa do meio-dia, o culto das meninas de classe social mais elevada. Para mim, era uma oportunidade de elas conseguirem namorado ou convívio natural com rapazes que as aguardavam no átrio da igreja.
Finda a missa, oportunidade também para mostrar um vestido novo, eu ia directamente encontrar-me com o meu pai, na esplanada, sobranceira à praia. Nessa manhã, já ele tinha ido ao mercado fazer as compras que completava com o ruivo, peixe da sua predilecção e uma melancia muito de lhe fazer crescer água na boca.
Enquanto fazíamos horas para o almoço que a mãe confeccionava todas as manhãs, nós dois, pai e filha, passeávamos de braço dado, pela avenida da Liberdade, a única frondosa daquela artéria da cidade, não conversando muito mas cúmplices no nosso orgulho recíproco.
Recordo com saudade esses momentos. Meu pai envergava um fato completo, de bom corte, confeccionado por medida no seu alfaiate habitual, azul escuro ou cinzento. Quando não usava o chapéu, punha uma boina, inclinada sobre a orelha, “boina à espanhola”, muito apreciada por certas pessoas gradas da terra. Uma delas, o Dr. Rigueira, Reitor do liceu que eu frequentava e que era também meu professor de Matemática. Completava a indumentária de meu pai, os adereços peculiares dele, um alfinete de gravata, a aliança, um anel grosso com um brilhante e o seu inseparável relógio de bolso com corrente de prata.
Quando o clima nos proporcionava digressões prolongadas, a pé ou de bicicleta, íamos até à serra da Boa Viagem ou às minas do Cabo Mondego. Aconteciam sempre peripécias divertidas que nos enchiam de alegria e fortificavam a nossa convivência. Não mais esqueço o susto que apanhei quando o vi rebolar pela ribanceira seguido pelos torrões de argila marginais que não suportaram o seu peso. O seu sentido de humor, a sua tranquila observação das ocorrências estimulavam-me a encarar a vida de uma forma corajosa e saudável.

Pai, meu Pai querido, a tua falta continua a ser um profundo golpe e a ferida deste enorme vácuo, sangra, sangra muito. Com a tua perene ausência, um vazio se ergueu por todos os lugares que percorremos juntos, ligados por uma camaradagem que não vejo repetida na maior percentagem das famílias. Imagino que, onde quer que estejas, o teu olhar me persegue e o teu espírito, sábio, intransigente e justo, me aguarda para, nos mistérios do insondável, continuarmos os nossos passeios de bicicleta.

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