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de Março é um dia para acentuar a figura daquele que, para além de me dar o
ser, me ajudou durante quarenta anos, a desenvolver em mim a planta que ele,
com a minha mãe, lançou no mundo, numa época em que a moral era a pauta da
família e o respeito e a obediência à autoridade progenitora, era um pelouro
destinado a valorizar a sociedade.
Habituei-me
a reconhecer o meu pai, ainda garota de colo, quando ele envolvia os meus
minúsculos pés e mãos no côncavo das suas mãos musculosas e fortes.
Homem
de acção mas de poucas palavras, era ele que me deitava, não sem antes me
ensinar a escolher a roupa do dia seguinte e, com meticulosa sabedoria, a
ordenava numa cadeira.
Quando
os meus movimentos se tornaram autónomos, esperava o meu pai à hora do almoço. observando-o
da janela. Ele assomava ao fundo da rua, no seu fato de macaco enodoado de
óleo, a boina enterrada na cabeça. As mangas arregaçadas denunciavam uns braços
másculos, morenos do sol de verão. No espaço de pouco mais que meia hora,
almoçava paulatinamente e do mesmo modo repousado, descascava a maçã ou a
laranja que não dispensava nunca.
Os
meus pais amavam-se muito e constatar isso, fazia-me feliz.
Aos
quatro anos, aprendi a andar de bicicleta. Numa certa zona da cidade, frente à
foz do rio Mondego, exercitava-me nos fins de tarde, alugando também para ele
um velocípede muito maior do que o meu, que parecia um brinquedo. Daí que o
ciclismo fosse o desporto preferido ao longo da minha vida.
Os
domingos eram dias especiais para nós. Por exigência materna, eu ia à missa do
meio-dia, o culto das meninas de classe social mais elevada. Para mim, era uma
oportunidade de elas conseguirem namorado ou convívio natural com rapazes que
as aguardavam no átrio da igreja.
Finda
a missa, oportunidade também para mostrar um vestido novo, eu ia directamente
encontrar-me com o meu pai, na esplanada, sobranceira à praia. Nessa manhã, já
ele tinha ido ao mercado fazer as compras que completava com o ruivo, peixe da
sua predilecção e uma melancia muito de lhe fazer crescer água na boca.
Enquanto
fazíamos horas para o almoço que a mãe confeccionava todas as manhãs, nós dois,
pai e filha, passeávamos de braço dado, pela avenida da Liberdade, a única
frondosa daquela artéria da cidade, não conversando muito mas cúmplices no
nosso orgulho recíproco.
Recordo
com saudade esses momentos. Meu pai envergava um fato completo, de bom corte,
confeccionado por medida no seu alfaiate habitual, azul escuro ou cinzento.
Quando não usava o chapéu, punha uma boina, inclinada sobre a orelha, “boina à
espanhola”, muito apreciada por certas pessoas gradas da terra. Uma delas, o
Dr. Rigueira, Reitor do liceu que eu frequentava e que era também meu professor
de Matemática. Completava a indumentária de meu pai, os adereços peculiares
dele, um alfinete de gravata, a aliança, um anel grosso com um brilhante e o
seu inseparável relógio de bolso com corrente de prata.
Quando
o clima nos proporcionava digressões prolongadas, a pé ou de bicicleta, íamos
até à serra da Boa Viagem ou às minas do Cabo Mondego. Aconteciam sempre
peripécias divertidas que nos enchiam de alegria e fortificavam a nossa convivência.
Não mais esqueço o susto que apanhei quando o vi rebolar pela ribanceira
seguido pelos torrões de argila marginais que não suportaram o seu peso. O seu
sentido de humor, a sua tranquila observação das ocorrências estimulavam-me a
encarar a vida de uma forma corajosa e saudável.
Pai,
meu Pai querido, a tua falta continua a ser um profundo golpe e a ferida deste
enorme vácuo, sangra, sangra muito. Com a tua perene ausência, um vazio se
ergueu por todos os lugares que percorremos juntos, ligados por uma camaradagem
que não vejo repetida na maior percentagem das famílias. Imagino que, onde quer
que estejas, o teu olhar me persegue e o teu espírito, sábio, intransigente e
justo, me aguarda para, nos mistérios do insondável, continuarmos os nossos
passeios de bicicleta.
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