Minha mãe – heroína de luta e
matriarca de paz
21
de Março de 1903 - 1 de Agosto de 1977
Dos
oito filhos de minha avó materna, dois rapazes morreram em combate, na guerra
de Angola e três raparigas vieram da aldeia para a cidade, na função de damas
de companhia.
Naquele
tempo, era usual abandonarem o agregado familiar e a lavoura para encontrarem
uma vida menos dura que a do campo.
Minha
mãe foi uma delas, convidada por uma senhora refugiada da revolução civil
espanhola. Era uma figura de grande classe, de gargantilha engomada e vestido
até aos pés, como então era costume nas famílias de nível social elevado.
Já
em Portugal, depois de ter casado, enviuvado logo a seguir e sofrido um aborto
em consequência desse desenlace, esta fidalga de Madrid tomou sob a sua
responsabilidade a formação e educação da sua pequena pupila e preencheu assim
a sua solidão, libertando momentos nostálgicos e alicerçando a sua forçada
independência.
De
vez em quando, minha mãe visitava os pais e toda a região a recebia de braços
abertos. Os aldeões divertiam-se muito com as novidades que ela levava da
cidade e a sua curiosidade atingia o auge, quando ela subia para uma mesa e
dançava o “charleston”, música muito em voga nos anos 30.
Os
hábitos da moderna sociedade citadina não deixaram de influenciar a pequena
“bailarina improvisada” que exultava perante os campónios atónitos, por tanta
desenvoltura e agilidade. Habituada à proximidade com damas de prestígio,
visitas assíduas, em grande parte consorciadas com empresários ou militares de
bigode façanhudo, tinha aprendido tudo o que uma jovem de linhagem deve saber,
inclusive a dança, acompanhada de castanholas que ela manuseava com perícia. De
facto, minha mãe gostava muito de dançar, tanto, quanto meu pai não acertava um
compasso.
Depois
de ser rainha da festa por uns dias, voltava à casa não raro com ofertas que os
meus avós e tios, lavradores abastados, tinham prazer em dar à “senhora fidalga”
ou à “fidalga espanhola” fruta consoante a época: cerejas, laranjas, uvas,
nêsperas, nozes, avelãs, marmelos, produto da terra, suculento e doce; batatas,
azeite em garrafão e azeitonas. Julgo que foi isso que levou minha mãe a
especializar-se em compotas, bastante apreciadas nos chás de Inverno.
Quando
minha mãe se casou, a senhora que a educara e foi mais tarde minha madrinha de
batismo, zangou-se e cortou relações, indo viver para Figueiró dos Vinhos, na
mansão de uns amigos. A casa da Figueira ficou fechada. Meus pais alugaram um
pequeno apartamento de noivos mas a situação não durou muito. As duas mulheres
estimavam-se e sentiam saudades uma da outra. Apesar de acompanhada, a solidão
agudizava-se com a ausência daquela que fora sua amiga e confidente dos bons e
maus momentos, com quem se habituara nas alegrias e dificuldades. Porém, os
seus pergaminhos impediam-na de tomar a iniciativa de uma reconciliação.
Minha
mãe é que não esteve com meias medidas. Recém-casada e com pouco dinheiro mas
na consciência plena do que se impunha fazer para acabar com os arrufos e
evitar males maiores, juntou o útil ao agradável e deliberou instalar-se com o
marido na casa que fora da sua adolescência e juventude, tanto mais que estava
grávida de meu irmão.
Enviou
um ultimato, para um dos amigos, o tenente Valadão, rematando:
-
Se não ma trouxer, vou eu buscá-la.
Vi
sempre em minha mãe, uma pessoa determinada, corajosa e aguerrida, com
ascendente sobre meu pai, homem calmo e confiante, que delegava nela o poder de
decisão e o controle de tudo. Era muito respeitada e amada pelas pessoas com
quem relacionava e mantinha um círculo de amizades saudável. Era muito sociável
mas estabelecia limites e nem toda a gente admitia na sua intimidade afetiva.
Para
além da responsabilidade doméstica, minha mãe tratava de outros assuntos com a casa,
pagamentos e contribuições, obrigações fiscais. Na época balnear preparava o
primeiro piso para receber os banhistas que, durante os meses de verão lhe
davam um lucro satisfatório. Quando foi necessário restaurar o rés do chão e
parte do segundo andar, todas diligências burocráticas arvorou sobre os seus
ombros e ela própria vigiava os pedreiros e o próprio empreiteiro, não fosse
“haver ninho atrás da orelha”, como era sua expressão quando suspeitava de
fraudes. Minha mãe invocava com frequência e a propósito de tudo, os
provérbios, os adágios. Dizia que “voz do povo era a voz da razão” Por isso,
eram transmitidos de geração em geração, de século para século.
Lembro
que minha mãe tinha muito entusiasmo pela leitura e por leilões. Sempre que
podia, não perdia a oportunidade de assistir a um. As famílias de nobre
linhagem, a fidalguia, decadentes, não tinham outro recurso senão as vendas em
hasta pública, que passaram a ser frequentes naquele período. O recheio de
palacetes ou vivendas aristocráticas, era descrito nos jornais com detalhe e
nele, surgia sempre um ou outro objeto de valor adquirido por um preço
irrisório. Algumas vezes a acompanhei e admirava a sua vontade férrea, a sua
tenacidade no confronto com outros interessados na mesma preciosidade. O seu
gosto caía infalivelmente nos móveis de estilo.
Todas
as noites, sem alteração, às 21 horas, a cozinha estava arrumada. Juntavam-se
os casais para conversar, desabafar, falar mal da “criadagem”. Os homens
jogavam as cartas, as mulheres bordavam ou faziam crochet Ninguém fumava. A
telefonia conservava-se desligada. Televisão não tinha iniciado ainda o seu
percurso. No ambiente, respirava-se um firme elo de simpatia, conforto e
afabilidade.
Eu
era a única criança mas divertia-me imenso, observando, ouvindo e apreciando. À
hora do chá, havia a acompanhar a bebida, um “bolo de mármore” ou “franciscos”,
uns biscoitos deliciosos que minha mãe, como excelente cozinheira que era, se
esmerava em modelar. Com os dedos fazia rodar pedaços de massa até tomarem a forma
de SS; depunha-os em filas no tabuleiro e pincelava-os com azeite. Também era
perita nos “pastéis de massa tenra” com recheio de picado de carne ou de creme
com nozes.
Aos
domingos, de tarde, íamos passear até ao jardim municipal onde se conversava, se
combinavam eventos com os nossos amigos, se comia pevides ou queijadas e se
ouvia música de um altifalante. Em datas comemorativas, a banda de música da
Filarmónica tocava no coreto. Quando era montado um palco, sabia-se que havia
danças e cantares folclóricos. Então juntava-se muita gente. As crianças
andavam de triciclo ou de trotineta ou saltavam no jogo da “macaca” traçado na
areia vermelha do jardim.
Enquanto
eu me entretinha a andar de baloiço, entusiasmada em chegar com os pés às copas
das árvores, minha mãe arranjava sempre pão seco para os cisnes e peixes do
lago, onde flutuavam também algumas plantas exóticas. As pombas chegavam em
bandos numerosos, participando ao festim das migalhas.
No
pinhal das Águas, chamado assim por nesse local existir um edifício destinado à
filtragem das nascentes para consumo público, presos por grossas cordas a
troncos de pinheiros, alguém tinha disposto dois baloiços para adultos. Os
nossos picnics eram o meu encanto. Alegrava-me ver a minha mãe balançar o corpo
sem medo, gargalhando, desanuviada e feliz, como uma jovem em tempo de férias.
Foi
num desses passeios que trouxemos um gatinho para casa, languinhento,
magrizela, morto de fome.
Minha
mãe gostava muito de animais. Fez deste, um belíssimo exemplar, ajudando a
desenvolver a sua castiça raça alentejana. Ela própria o castrou. Arrepio-me só
de o evocar. Um dia em que o irmão, o meu tio António, nos visitou, ela
pediu-lhe ajuda. Ele negou a princípio, depois hesitou.
-
Só quero que o segures bem.
Embrulhado
num cobertor de “papo”, o felino aguentou a cirurgia não sem alguns berros.
Solto, devidamente tratado, fugiu para debaixo da cama e durante os primeiros dias
não fez mais que lamber-se, meticulosamente.
A
meu tio custaria a acreditar se não tivesse visto.
-
És de força!
-
Fiz o mesmo que o veterinário.
Nice tornou-se um gatarrão, de luminosos
olhos verdes, meu companheiro de folguedos, pois lhe ensinei a atravessar o
arco e o jogo das escondidas.
A
coragem de minha mãe era apenas aparente. Não era capaz de matar uma galinha.
Quando era necessário confecionar uma canja de um “borracho”, pedia ajuda a uma
das irmãs ou a meu pai que tomava sobre si a tarefa de preparar o coelho sem
que nada sofresse. Durante esse trabalho de limpeza e dissecação, minha mãe não
estava presente. Aparecia para o “meter em vinho de alhos” e estufá-lo.
Na
época da “matança do porco” que decorria em casa de meus avós maternos, duas vezes
por ano, minha mãe fugia para longe dos grunhidos do suíno. Mas todo o ritual,
iniciado por homens experientes chamados para esses eventos, tinha o seu quê de
pagão, desde a prisão do animal ao “desmanchar" do corpo pendurado num gancho de
ferro.
Minha
mãe adorava crianças e viveu sempre por elas rodeada.
Na
sua câmara ardente tinha junto da sua, uma urna branca de um recém-nascido.
Ao
lado da sua sepultura, repousava uma criança de seis anos, vítima de acidente.
Nada
acontece por acaso.
Nesta
imensa tristeza que me trespassa quando recordo a sua figura enérgica, os seus
passos silenciosos, o embevecimento com que me olhava, as suas máximas morais,
os adágios populares tão do seu hábito mencionar a propósito de qualquer ato
menos correto, o seu sorriso a abrir-se em gargalhada fresca que inspirava
otimismo, fico olhando para dentro de mim, prendendo as lágrimas, fazendo por
ignorar aquela dolorida orfandade que nos despiu de tudo para sempre.
Para
sempre?
A
ferida sangra como no primeiro dia.
E
eu sinto, também como naquele dia, a sua mão branca e macia irradiando um calor
que por todos estes anos aqueceu o meu coração. A sua mão, apertando a minha,
não significou uma despedida mas um guia, um farol, uma sentinela, uma bússola.
Mas
não só. A esperança promissora de nos encontrarmos de novo nesse mistério que é
a eternidade.
Gostei muito de ler o que escreves sobre a avó. Muito poucas lembranças tenho dela e fiquei a saber um pouquinho mais, além da sua coragem, já que a história de "capar o gato" foi sempre obrigatória quando se falava da avó Alzira.
ResponderEliminarSaudades dela e do avô e pena de não ter partilhado mais momentos com eles. Ficam as estórias...
A avó tinha particularidades interessantes…como toda a gente, julgo. Sobretudo, era uma personalidade muito forte. Nada parecia abatê-la. Apenas a vi chorar uma vez, pelo falecimento da mãe, tua bisavó; tinha eu 14 anos. Não quero dizer com isto que fosse insensível. As suas emoções eram interiores. Penso que serviam para a fortalecer e lutar pelo que mais desejasse, o bem e a prosperidade dos seus e da casa. Ordem, regra, pontualidade, alegria e presença, eram as suas dominantes. Muito ficou por dizer dos teus avós maternos e tudo dos teus avós paternos, cuja avó, mãe do teu avô Manuel era descendente aristocrata. Mas desses, apenas sei o que uma tia, irmã de meu pai, me contava. Talvez um dia… entretanto, beijinhos e a certeza de que podes orgulhar-te deles.
EliminarEra tão pequena quando te perdi avó... Que falta me fazes... Queria tanto ter podido usufruir muito mais da tua companhia ao longo da minha vida... Teria sido tão importante para as minhas escolhas e decisões, tenho a certeza disso. Mas, sinto que no siti onde possas estar, junto de meu avô, ambos velam por mim e minha familia. Te ADORO avó! Beijinhos.
ResponderEliminarNunca foi tão acertado o nome de “avó,” mãe duas vezes” como na avó, minha mãe. Também era interessante como chamavam ao avô, “pai”, como reflexo do meu vocativo. Eram as únicas pessoas em quem eu confiava os cinco garotos e podia fazê-lo com liberdade total, pois o carinho, os cuidados, a presença assídua, o calor “maternal” irradiavam dos dois como um farol de todos os dias.
EliminarRepito e invocarei sempre os nomes dos teus avós nos minutos da minha solidão, pois apesar de ter criado uma grande família, eu sinto-me cada vez mais órfã.
Feliz, no entanto, por todos vós, no pouco que com eles convivestes, os tendes na memória e no coração em toda a sua verdade e intensidade de afetos. O seu exemplo, do avô, da avó, prolongou-se nos teus filhos, criaturas excecionais que te têm favorecido com alegrias e abundância de bênçãos. Julgo ser uma prova do zelo e da vigilância de quem tanto vos quer e não pôde acompanhar o vosso crescimento mas não deixou de estar atento em todos os momentos cruciais. Hoje, devem estar orgulhosos dos seus bisnetos e dos seus tetranetos, uma geração invencível.