1
de Maio de 2012
TRABALHO - Heroísmo
Quando
se fala em trabalhador, aparece logo a discriminação de classes.
Podemos
pensar que a palavra tanto se relaciona com o individuo que desenvolve
actividade mental, intelectual, como o que executa mão-de-obra, aplicando a sua
estrutura física. Quando não trabalham por conta própria e não são
independentes, submetem-se a uma entidade patronal. Quer se queira quer não,
esta é a base fundamental do seu quotidiano económico.
Quando
se fala em trabalhador, associamos o
elemento da classe abaixo da superior, a que nos oferece os doutores, os
engenheiros, os cientistas e outros de craveira mais complexa e abstracta que
lhes foi conferida por um diploma universitário.
Mas
precisamente porque nos sistemas governamentais as classes ainda se mantêm, o
trabalhador é do povo e foi sempre explorado pelo espírito de quem lhe dá algo
para fazer em troca de remuneração indispensável.
Quer
em ditaduras, quer em democracias, o trabalhador sofre por necessidade, por obrigação
e porque tem contra ele a lei do mais fraco, as vicissitudes de um destino
inglório, suportando com sacrifício as crises conjunturais.
Mas
se não existisse o trabalhador, figurado na roupagem do agricultor, mineiro,
pescador, obreiro da construção civil, estivador e outros, a quem ficariam
devendo a sua formação, os arquitectos, os economistas, os médicos, os
professores?
Neste
dia comemorativo daquele que trabalha ou espera por uma tarefa que o realize
com dignidade, eu ofereço o meu conto humorístico; celebrando os meus dias de
trabalho árduo que me permitiu que estudasse e recolhesse experiências de vida
e conhecimento, a única riqueza válida, o único prestigiante legado que vale a
pena deixar aos nossos filhos.
RIM
AO MADEIRA
A
razão por que fugi pela primeira porta que se me deparou, por que sou um homem
pacato, por que detesto exibir-me e, enfim, alguma razão me assiste para não
chegar a vias de facto, foi a de ter escolhido uma mesa colocada precisamente
em frente do vestíbulo.
Os
extremos são contra a minha natureza e tive sorte em que a porta por onde
enfiei desse para a rua. Inspiro este ar, com ressaibos de mofo, não a plenos
pulmões, porque isso me excitaria o apetite e eu estou francamente esfomeado.
Melhor, nauseado mas com uma enorme vontade de comer, trincar qualquer acepipe.
Suo
e sinto que preciso de limpar a testa mas não encontro motivo para o fazer em
público.
É
a mim, sempre, que tais coisas acontecem.
Será
que tenho cara de quem aceita o barrete enfiado até às orelhas? Só de pensar no
facto, provoco tonturas, aspiro com dificuldade e, a custo, me contenho de
voltar lá dentro e torcer o pescoço àquele… não sei como lhe chamar. A minha
adiposidade não permite.
Hein?!...
Não, nada! Pensei…
Escolhi
aquela mesa porque se me oferecia de canto próximo da janela, frente ao
parapeito envidraçado onde a loiça se empilhava. Dali, avistava a cozinha, o
rodopio dos cozinheiros com o seu boné erecto, o barulho metálico das panelas,
o estrugir dos refogados. Pode ser tudo “fita” mas o espectáculo impressiona-me
de uma maneira confortável, principalmente, a decoração das travessas.
Como
visionar o que será o meu repasto servido por uma alva toalha bordada, com
copos e talheres a reluzir e um açafate de boa e lustrosa fruta acabada de
colher? Então cá na cidade, é mesmo isso. Para quem sabe escolher, espera a
messiânica reforma agrária e elege um dia diferente, num restaurante diferente,
embora esportulem uma choruda maquia, a ele, a quem nunca viram por ali e cujo
fato lhe dava uma aparência de um “não ser dali” endinheirado; um dia diferente
na sua vida porque nos outros, os copos vinham ensebados, a toalha no fio e se
quiser comer fruta, tem de esquecer que é importada para não sentir na pele, o
preço que paga por ela e na saliva a falta de sabor dos produtos mal adubados.
O
panorama da sala não instigava a imaginação. Enquanto uma pessoa espera que a
sirvam, vai observando o ambiente. O forro das paredes onde se vislumbra alguns
furúnculos de argamassa; a suspensão do tecto cuja corrente serve de palco a
uma inofensiva e bucólica borboleta; o soalho sobre o qual se detém a morena
bem lançada do calendário, mais artística do que sensual, as flores de plástico
tão semelhantes às de jardim, o gato persa que se coze com a soleira da
entrada, arrebitando a orelha. Experimenta contemporizar mas está marcado para
a pisadela do primeiro transeunte que não veja onde pôr os pés.
O
vozerio dos que entram, os rostos dos que permanecem… ah! Esses rostos valem um
poema!... Retalhos de conversa aqui e ali…
Assim
mesmo. Para acalmar. Sou um modesto funcionário. Os proventos não chegam para que
eu aspire a refeições requintadas, em atmosferas requintadas. De resto, a
meia-laranja absorve a parte de leão. Talvez seja este o motivo por que sou um
adiposo, com tendência para a indigestão ou calepsia…Creio ser este o nome.
Se
escolhemos um lugar próximo do interior, depara-se-nos a circunstância de ter
de observar a azáfama que vai na cozinha e a desdita de descobrir que as
pequenas virtudes são absorvidas pelos defeitos que avultam sob o nosso
critério como impróprios para consumo. Mas que se há-de fazer? O ser humano é
todo ele imprevisível… Ou se sai com uma fantasia ou se sai com uma anomalia.
Não, senhor, não sou filósofo Não me interrompa, pois posso atrapalhar o curso
do meu pensamento.
Quando
a impressão se avoluma, há que fixar o rosto dos circunstantes, comensais como
nós, analisar os que são servidos, o grau da sua avidez quando contemplam uma
iguaria. Trava-se então sobre a mesa, uma batalha tridimensional entre bolsa,
comida e apetite. Depois, pela ginástica dos seus maxilares, consideramos a
densidade da sua fraqueza.
Enquanto
aguardamos a nossa vez, olhamos o vizinho de soslaio. Se o seu olhar se cruza
com o nosso, olhamos para o outro lado. O perfil do rapaz de lunetas, de aros
grossos e rabo de cavalo, barba de estudante desafortunado mergulhada num
pequeno dicionário de vocábulos… Não sei o que seria dele se não fosse a
ementa.
Foi
em face dessa maldita coisa que eu decidi sair do prato do dia e mudar de
restaurante também. Entusiasmava-me o facto de não encontrar as velhas caras,
os estafados sorrisos e os caquéticos salamaleques ao chefe de secretaria, um
forreta, que se não dava ao luxo de dispensar a companhia de um proletário como
eu.
O
orgulho de mandar preparar um acepipe especial enchia-me os capilares de um
santo regozijo. Por isso, arvorei um ar imparcial, convincente, de bons e
distintos hábitos Um prato com lagosta. Se a sala tivesse um espelho ao alcance
do meu nariz, teria infalivelmente olhado para ele.
Esqueci
a lagosta. O empregado, aprimorado no seu colete de veludo vermelho e papillon
às riscas, sabia lá até que ponto a minha frugalidade, imposta pela poupança,
estava a ser incómoda!
Assim,
endireitando o nó da gravata, continuei a observação geral. Para disfarçar.
A
senhora que olha para todos os lados sem ver nada, sem prestar atenção a nada e
responde ao companheiro, marido extra-conjugal, já se vê, por meio de
aparentemente cúmplices´ monossílabos. O assunto não deve ser interessante.
O
cavalheiro, expressão de símio, que lava as mãos antes de se sentar, lê agora o
jornal mas não volta a lavá-las quando o vierem servir. É dos que não comem
pão. Acho.
Bem,
mas vamos ao que interessa.
O
casal de belgas entrou e sentou-se a uma mesa do meu lado. Pediu lagosta. Tinha
de ser. Uma grande, farta e ultrajante lagosta pois a consideraram “muito
barata”. Imagine se eu ia ficar com o meu prato plagiado! Pedi então ao
empregado que se fosse a tempo de substituir o meu crustáceo, preferiria “Rim
ao Madeira”, com guarnição, conforme indicava na lista.
Não
enrugue o sobrolho porque os elementos que decoravam aquele pitéu e constavam
do cardápio, eram impressionantes… beldroegas, tâmaras… bom.
Quebrados
do calor, os belgas pegaram em guardanapos com as pontas dos dedos e fungaram
sem muita convicção. São formas de ser. Também não gostaram do nosso caldo de
“navete”.
Há
um telefone que toca. O meu estômago afunila como que apertado por um
torniquete e sem o querer, dou um largo suspiro. Olho o relógio e, para além do
balcão, alguém me acena que vem já aí o meu delicioso pitéu.
Estava
eu na contemplação quase beatífica do meu rim. O barrete do cozinheiro impunha
magnificência ao ritual. Pegou no corpo rubicundo, listrado com uma polpa
fresca e suculenta que me fazia cócegas no palato. Largou-o. Tornou a pegar-lhe.
Manuseou-o com as pontas dos dedos…
Esta
longa história de me entregar às sensações para tornar a espera mais divertida,
menos penosa, não ficará do domínio público e é pena. Faria rir o mais sisudo.
Como
ia a dizer, o cozinheiro polvilhou, esfregou, condimentou, desenrolou as
cartilagens, acomodando-as numa arquitectura magistral.
Fiquei
tão entusiasmado que esqueci os belgas e a sua lagosta, uma carcaça inútil ou
em vias disso. Eu estava feliz pela perspectiva de me satisfazer com comida
manufacturada sob a ética de certa tradição que não excluía as ervas
aromáticas, hábito que a minha meia-laranja não tem devido a uma invenção psicossomática.
A
travessa fez a sua aparição e os seus reflexos estamparam-se. No restante da
baixela. Correram gotas de um líquido untuoso, adulador. Os meus conhecimentos
de gastronomia são estritamente superficiais. Daí que para a frigideira como
para mim, fossem indiferentes o azeite ou a manteiga. Mas não eram, nem um nem
outra. A cor tinha mais subtileza. E os eflúvios por ela dimanados, ondulando
até ao prato, invocavam requebros de odaliscas, epidermes de cetim.
O
estrugido ecoou na cozinha como um clarim. Ou trombeta em dia de sarau. Começou
a perceber-se no ar um perfume típico de lareira fidalga, olímpica, brasonada;
um perfume inebriante que dilatava as narinas e o suco gástrico.
Encontrei-me
a engolir em seco. Senti-me regalado e comovido; disposto a pagar tudo o que
tinha na algibeira, um maço razoável e, na carteira, as novas notas de
circulação recente, que se não gastam logo porque dá sorte conservá-las. Puf!
Crendices!
Não
iria jantar. Evocaria uma hipotética cólica no fígado. Mais moinha, menos moinha.
A cara-metade meter-me-ia na cama com botija de água quente. Ou gelo. Nestas
coisas nunca se sabe o que se passa na cabeça das mulheres, pavoneadas em
enfermeiras segundo a intenção do amor que dizem dedicar-nos. A minha, não devo
esquecer, que se casou comigo e com um ordenado obstinado, fiel aos seus
princípios, não pode saber da minha “escapadela”. Que diabo! Um dia não são
dias. Apeteceu-me. Se lhe dissesse… ui!... caía o Carmo e a Trindade. As suas
recriminações seriam pedregulhos. Pôr-me-ia a chá. Desgastar-me-ia. Mas já nada
me faria voltar atrás.
Via-me
a cortar a carne, metodicamente, em pedacinhos. A saborear. A molhar grossos
rolos de miolo de pão naquele pastoso molho marron, cuja rescendência aguçava a
curiosidade dos outros clientes.
E
quem sabe se também a inveja!? Que constasse, eu ainda não estava de férias e o
fim da semana vinha ainda longe. Ah! Nababo! Isso! Sentia-me nababo!
Iria
pedir uma ou duas cuvetes de foie-gras. Morangos em chantilly como sobremesa. Ou uma cassata bem geladinha.
A
força do aperitivo instiga-me à sopa. Mas não desejo uma sopa de pobre. Na
realidade, uma que me apeteça em pleno, com requinte. Canja. Creme de marisco. Opto
pela canja, servida numa terrina. Em casos especiais como este, jubiloso da
sensação de ser um homem sem fadiga e sem horário, saio da rotina, sirvo-me da
comida policromática, envolvo-me do doce torpor do fumo que se solta da sua
fervura. Bem vê, não ficaria bem uma “económica”. Servir-me-ia a meu bel-prazer.
Ah! Não havia dinheiro que pagasse esta evasão. Uma odorífera canja. De
galinha, não de franganote anémico. Exibiria os ovinhos, juntos como um cacho,
muito amarelinhos. Canja de galinha de campo. E pés. Não, pés, não. Não
resistiria a sugar-lhes os metatarsos. Que figura!
Claro,
diz bem. Pareceria mal. Habitualmente, não como sopa. Intumesce o esófago Intumesce
sempre o esófago de um modesto trabalhador. Mas não dispensaria nesta o
coração, um pedacinho de fígado e moelas.
Salada?
Não me aventurei. Tive medo. Se estivesse mais abonado e a empresa não
estivesse em crise…, é uma realidade que ultrapassa as minhas ideias fixas. E
quando se entra neste campo das ideias fixas, concentram-se logo em nós as
atenções., principalmente se temos um comportamento diverso.
Ah!
Eis o cerimonial da travessa. A bela recepção e o brilhante panorama. Quase
chorei de satisfação. O quadrado da janela por onde eu conseguia enxergar toda
aquela manobra parecia alargar e conter-me todo dentro da famosa iguaria. Que
maravilha!
Uma
decoração colorida, espectacular.
É
então que surge, imponente, a garrafa. Com o saca-rolhas, vejo o chefe sacar a
rolha do gargalo. Vejo-o levar a garrafa à boca, a sua garganta gorgolejar, as
suas bochechas enfunarem como um balão e os seus lábios em forma de “U”,
borrifarem o meu desgraçado petisco. O meu querido rinzinho regado com o
celebrado vinho da Madeira… e perdigotos.
Sim,
sim, não me sinto bem. A recordação dá cabo do meu vigor encefálico. É por isso
que estou cá fora. E corri como se trouxesse o diabo depois de mim. É por isso
que tenho fome e não me apetece comer.
Não
sei como não morro. Sinto-me extraordinariamente comovido.
Os
senhores desculpem.
Muito
boa tarde.
Muito bom. A vida de um trabalhador é sempre a de um que tudo experimenta e tudo carrega. O trabalhador lamenta-se porque tem de fazer contas, contas à vida que leva e não chega para folgar, nem para ter a certeza de que pode dar aos filhos uma vida melhor (porque não a teve).É uma vida de rotina escrava disfarçada de democracia. E, os filhos vão sobreviver e viver em "democracia".
ResponderEliminarEurídice Marques
Obrigada, querida Eurídice por emitires a tua opinião. Vivemos uma época de opressão onde nem falar apetece porque “manda quem pode”, mesmo que mande mal.
EliminarNa generalidade, convencionou-se que o trabalhador é o indivíduo que executa serviços em que desenvolve força física, especialista na sua área, a maior parte das vezes sem possibilidades de acesso à cultura, por uma razão ou outra.
O ideal seria colocarmos o tema de maneira global e afirmar que “trabalhadores” são todos os que trabalham, exercem uma profissão. Tenham ou não diploma superior, o certo é que o trabalho exige coragem, estoicismo e vocação. Também deveria pôr em relevo a nobreza de sentimentos e a igualdade de direitos, liberdades e garantias. Mas a culpa é dos interesses, ambição e poder gerados pelos sistemas governativos, sejam eles ditaduras ou democracias. A nossa democracia - dizes bem – esconde as roupagens de uma escravatura inglória. Oxalá as novas gerações, espelhadas nas pessoas pequeninas de uma Carolina, de um Bruno Filipe, de um Gabriel, de uma Luana, de uma Vera, de uma Iolanda, de um Renato, de uma Susana e na nossa juventude, uma Inês, um Daniel, um Henrique, uma Patrícia, um Alexandre, façam das suas vidas o plano de objectivos seguros, por um futuro mais justo, por um Portugal mais rico em conhecimento. Não é por estarmos em democracia e termos acabado com o fascismo, que a luta deixa de continuar. Os ideais não morrem.