Podiam ter escolhido outra flor. Mas foi o cravo. E
para que se acentuasse mais como símbolo, dispensaram os tons róseos, âmbar,
nacarado, coral, ágata e até os sarapintos de groselha nas cores mais
discretas, como o branco puro do sonho, menos fatigantes, preferindo o vermelho
vivo, rutilante, agressivo, que não deixaria margem para dúvidas. Uma cor para
não esquecer. Uma cor para continuar a gritar.
Tanto podia lembrar o sangue vertido pelos heróis
como calmante para dementes. Era apenas uma questão de prisma.
Vermelho, cor violenta, determinada que, a coberto
da sua pacífica aparência, rasgou a trama de arcaicos idealismos de pátria e
família e cerrou as grades para a iniciação de novos voos na fronteira rasgada
da liberdade.
Sobre canhões que avançavam silenciosamente pelas
ruas, o exército esboçava uma nova esperança, cúmplice no desmantelamento de
maiores hostilidades e responsável também pela hora decisiva que definiria o
contexto de mudança.
Sem golpes sangrentos, sem perdas significativas,
sem sacrifícios sensíveis a não ser o daquelas que viram no exílio o passaporte
para a ilibação das suas responsabilidades, o país viu-se de repente a esfregar
os olhos, a espreguiçar-se, a arejar os miolos, a respirar lufadas de ar ventilado,
fulminando a queda do opressor com a vitória da sua individualidade.
Da manietação, passava-se à gesticulação eufórica,
da contenção do pensamento à evasão, à livre expressão, à acção desenvolta, do
silêncio forçado ao freio nos dentes do discurso.
Abril de 1974 foi explosão de fogo de artifício que
coruscou nos domínios de uma panorâmica inusitada a que os portugueses aderiram
mesmo antes de compreenderem o verdadeiro significado das frases “morte do
fascismo” e “nascimento da democracia”.
Daí, a noção errada de viver ao estilo de uma
Europa avançada no progresso mas vazia de valores morais. Daí, os atropelados,
o egoísmo separatista erigindo o seu próprio altar de conceitos e
fundamentalismos. Daí, o cansaço e a criação das suas próprias passividades logo
após a deflagração da fogosidade dos seus ímpetos.
Contornando a essência das suas virtudes ainda
inexploradas, Portugal estimulou as suas próprias diatribes e deu vulto à
perversidade dos seus íntimos suspiros de alívio, por tantos anos aguilhoados ao
duro fetiche de um governo dourado. Da cerviz vergada, dos sussurros, da
crítica velada, das conspirações, passava-se à gaiola aberta de uma nova
existência.
Para onde apontava?
Para aquilo que se não tinha.
Melhor distribuição da riqueza. Sistemas educativos
a níveis superiores de todas as inteligências, sem discriminação de hierarquias
económicas. Reformas estruturais ambientais. Desenvolvimento agrícola e melhor
exploração dos terrenos improdutivos. Industrialização reformulada e acesso a
novas tecnologias.
Emprego para jovens e oportunidade de reciclagens
profissionais para os desempregados de longa duração. Protecção dos cidadãos e
defesa das prerrogativas específicas da mulher e da criança.
Da reserva bravia que o sistema político, então
vigente, aprisionava, irrompeu como um fluxo toda a fantástica surpresa de
erros e delitos, de promessas e adulações, de farsas e decisões irreflectidas.
A história descubra e condene.
Vinte anos passaram e me parece que os militares de
Abril estão tão desiludidos quanto os que veem aproximar-se o fim dos seus dias
mergulhados em reformas de miséria, sem mais ambições nem mais segurança que a
monotonia e o medo.
Pesarosos, olham à sua volta e verificam que tudo
está para fazer, entre montanhas de papel e burocracia, entre castelos
projectos e relatórios perdidos no complexo enquadramento das legalidades,
ignorando estatísticas e coligindo interesses partidários.
Entre a volúvel cifra dos milhões que ninguém sabe
– ou sabem alguns – em que são aplicados, procura-se ainda a famigerada reforma
agrária, a apregoada melhoria do sistema educativo, uma construtiva coerência
económica, uma política saudável, de cálculo científico que visem os interesses
de um país aberto para o mundo.
Subsiste a emaranhada teia conceptual em que se
programa a construção civil, com manifesto repúdio pelo conforto das
populações. Permite-se que complexos industriais continuem a poluir as águas e
a atmosfera de resíduos tóxicos. Adoçam-se os males da natureza com a panaceia
de presidências abertas ecológicas. Caminha-se para a degradação cada vez mais
acelerada dos hábitos que eram, no tempo da ditadura, inspiração de uma, pelo
menos aparente, comodidade social.
A impunidade dos corruptos amplia generosamente o
cardápio das vítimas de boa fé. Que revolução se perpetuou para não extirpar os
hábitos perniciosos de um sociedade de consumo de alto risco que vive na
imitação de miragens internacionais tendenciosas.
Evocar 25 de Abril é evocar o presente com o seu
cortejo de distorções psicológicas: a exploração do trabalho infantil. O
tráfico de crianças e de jovens para as fronteiras do desconhecido. O
desmembramento das famílias com o adiamento da sua problemática e consequente
corrosão como célula básica.
E evocar o cultivo da ingenuidade pública e apostar
irresponsavelmente na sua credibilidade. É exercitar curiosidades mórbidas com
as notícias chocantes e especulativas, servidas por canais de informação cujo
principal objectivo está voltado para o quantitativo das audiências e não para
a moldagem da sua qualidade. É assistir à corrupção e fraude que, em todos os
domínios, inunda o país, como uma rajada epidémica: nos hospitais, nos
ministérios, nas escolas, nas autarquias, nos meios de comunicação social, nas
adjudicações e empreitadas, nos concursos de formação profissional, verdadeiros
atentados à saúde, à cultura, aos costumes exemplares, à integração civilizada
no organigrama da existência moderna.
Moral, pois, agonizando sob a gaze de sorrisos
convencionais.
O palco em que todo este elenco se movimenta exibe
cada vez mais brechas no peito daqueles que presenciaram a substituição de um
regime prepotente por um sonho de progresso e desenvolvimento na igualdade de
oportunidades e valorização dos grupos sociais vulneráveis, na abolição dos
sentimentos xenófobos, na diminuição do marginalismo pelo combate acérrimo à
proliferação do comércio de estupefacientes e ao desemprego, na formação
progressiva das mentalidades, sem megalomanias mas também sem entrincheiras
misóginos.
A flor de Abril, de um vermelho estereotipado,
símbolo perdido na desilusão, resume-se agora na perspectiva de transformações radicais.
Impõe-se que denuncie as promessas equívocas, as crispações demagógicas, que se
mantenha como o princípio reflectivo de uma culturação que urge semear em todos
os campos e em todas as mentalidades. O mundo vai exigir cada vez mais o seu
contributo e a sua imunidade. E não é pelos parâmetros de um Portugal
atormentado, sinuoso, mal informado e alienado que os cravos vermelhos na
lapela do casaco de cada um, darão a imagem de lucidez e vontade inteligente
determinadas.
Pelo contrário, cada cidadão trará consigo uma
corola murcha, de uma cor fictícia, enfraquecida pelos duvidosos pressupostos
de um tratado de Maastricht que a maioria não sabe como interpretar e a que a
minoria, dita esclarecida, opõe serias reservas.
Ocorre-me uma frase de Eisenhower quando discorria
sobre o governo se Salazar: “ditaduras deste tipo são por vezes necessárias em
países cujas instituições políticas não tão avançadas como as nossas”. O chefe
do governo teria dito: “ só com grande relutância aceitei o papel de ditador.
Muitos países latinos vivem melhor sob ditaduras benignas”, confidenciou também
em memorando para a Casa Branca.
Em 1952, o secretário de estado de Truman Dean Acheson
considerava: “não restam dúvidas de que se trata de um governo de um homem só.
O mais provável é que, se Salazar morrer ou perder os seus poderes, Portugal
volte à confusão da qual ele o terá arrancado”.
Se o regime deposto era anacrónico, dotado de um
conservadorismo doentio e de uma reclusão acerba, refractária a expansionismos
e indiscriminação de classes, devemos convir que duas décadas depois, Portugal
enferma de uma política improvisada, esbraceja sob mecanismos que primam pela
ausência de transparências e levam os portugueses a navegar num mar de vagas
alterosas, infestado de tubarões e minado de armadilhas.
Metralha-me a ideia de por onde andará Portugal,
desde que alguém sugeriu que “se restituísse Portugal aos portugueses”; pois, a
meu ver, já vai custando muito a uma pessoa identificar-se com a sua terra.
E, por associação de ideias, também me lembro que,
em alguma parte, se disse que “Portugal tinha o governo que merecia”.
Parece-me oportuno referir neste momento que, não
Portugal mas o povo português, tem a democracia que merece e merecem as suas
veleidades, pois tudo leva a crer que nada é pensado com base no interesse
colectivo.
E se é certo que “Roma e Pavia não se fizeram num
dia”, também não é menos certo que vinte anos é tempo suficiente para colocar
nos pratos da justiça tudo quanto se construiu e tudo quanto se destruiu.
Para onde pende o fiel da balança?
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