No dia 8 de Abril deste ano de
2012, celebrarei mais uma Páscoa, relembrando no coração como era esta festa nos
meus tempos de infância quando vivia na casa da Figueira da Foz.
Mal se ouvia o badalo do acólito,
coberto com uma capa vermelha, a anunciar a chegada do sacerdote, meu pai
descia os quatro lances de escada que separavam os andares e ia esperar o
grande Crucifixo na soleira da porta da rua.
Eu achava toda aquela comitiva
muito interessante assim como a cerimónia que se lhe seguia.
Na grande mesa de mogno da sala
de jantar, minha mãe punha bolo em fatias, amêndoas e um envelope com um
donativo para a Igreja Matriz, cuja fachada eu podia ver de todas as janelas
dos quartos.
Ajoelhados, todos beijávamos os
pés de Cristo. Meu pai não era católico mas respeitava a fé de minha mãe que
fazia questão de que eu assistisse à missa todos os domingos.
Enquanto o padre molhava o
hissopo e nos abençoava, os elementos da confraria, de opas lilases, recolhiam
as ofertas, desejando-nos todo o bem do mundo e a paz do Senhor.
A Páscoa simboliza Ressurreição,
nascer de novo. Eu interpreto este evento como o início de uma nova meta de
vida, reconhecimento dos erros e profundo arrependimento. Saber perdoar,
esquecer as ofensas, ter compaixão de quem prevarica, de quem é ignorante, de
quem é instigado para o mal.
Com o desejo de que esta Páscoa
vos cubra de benesses e sabedoria, deixo-vos o meu conto “Impossível Era o
Sonho”. Faz parte do meu livro de contos “Fantasmas de Sempre”, volume composto
por algumas produções inéditas e outras já publicadas.
IMPOSSÍVEL ERA O SONHO
De repente, acordei. Como é que
me deixara adormecer?
Ainda estremunhada, saltei da
cama, atravessei o quarto, galguei as escadas, levantei a aldraba do portão e
comecei a correr.
Como pudera ter cedido ao sono?
Como me esquecera assim das horas? O ar húmido da noite penetrou nos meus ossos
e uma vaga sensação de frio fez-me sentir o desconforto de um calafrio. Um
silêncio pesado como chumbo, enchia a atmosfera, vazia de estrelas e de luar, e
desenrolava-se sobre o tapete de cascalho que me golpeava a planta dos pés.
Acelerei o passo mas não demorou muito que lobrigasse no cimo de um atalho, uma
mancha negra que rumorejava em surdina.
Quando atingi a multidão de
homens e mulheres embuçados, descobri um vulto que, rodeado por ela, era o
único que parecia tranquilo. Respirei fundo. Tinha chegado a tempo. A uma
silhueta que estava de costas, puxei o manto pelo ombro:
- Que faz Ele aqui ainda? Não vos
disse que o levásseis?
- Mas… - respondeu o interpelado.
- Por favor, Simão Pedro, leva-O
daqui antes que seja tarde demais.
Os outros, atraídos pelo diálogo,
mostraram-se indecisos
- Não percebem que Ele ainda nos
faz muita falta? Que ainda temos muito que aprender com a Sua doutrina e o Seu
exemplo?
- Mas como podemos… - insistiu
Pedro.
- Despachem-se! Vêm aí os
soldados!
Ao longe, pelo clarão dos
archotes, vi brilharem os elmos e couraças do grupo de guardas incumbido de
efetuar a detenção.
O alarido das vozes e o som agudo
e prolongado das armas deram-me a entender que estavam próximos.
Quando me certifiquei de que
Simão e os outros companheiros cercavam o Mestre, conduzindo-O para fora da
clareira, avancei no restolho ao mesmo tempo que o exército desembocava da
bruma terrulenta das oliveiras.
Antes que perguntassem alguma
coisa, adiantei-me e proferi:
- Sou eu quem procuras.
Sem hesitar, o centurião apertou
as grilhetas nos meus pulsos estendidos para ele antes que tivesse ensejo de
desviar a atenção para o tumulto dos cavaleiros que procuravam abrir caminho
entre a massa do povo, cujos contornos mergulhavam na pincelada escura da noite.
- Que fazes tu aqui? - ouvi perto
de mim uma voz que o barulho das outras vozes disfarçava.
- Judas! Não me denunciaste! - repliquei,
entre receosa e implorativa.
- Não podes mudar a história. -
exclamou, desabrido - Por quem me tomas?
- Judas Iscariotis - atalhei com
energia - apressa-te a receber as tuas trinta moedas e acalma a tua alma.
- Não é a mesma coisa…
- Não, não é a mesma coisa. Não
há nenhuma figueira.
Uma bofetada crepitou na minha
face e Judas desapareceu tão furtivo como tinha chegado. Alguém riu,
escarninho. Empurrada por uma mão grosseira, continuei a andar.
O relento da noite colava a
camisa no meu corpo como uma decalcomania e os cabelos empastados nas têmporas
eram apelos à minha coragem. Fechei os olhos. Aos encontrões e sacudidelas, a
turba dos soldados e o povo que se juntara entretanto, estugavam o passo cada
vez com mais sofreguidão, erguendo-me quase ao nível dos céspedes que
bordejavam o caminho.
Levantei as pálpebras quando um
sopro de ar quente bafejou o meu rosto em sombreada carícia.
Vi Simão tentar dissimuladamente
aproximar-se de mim enquanto alguns homens armados paravam para beber.
- É mesmo casmurro! - pensei.
Com voz velada, Simão Pedro segredou:
- Está a salvo… pelo menos, por
enquanto…
Suspirei, desanuviada. O
discípulo prosseguiu:
- Intercedi por ti junto Dele mas
o Mestre não me respondeu.
Aquiesci com um abanar de cabeça
que Simão interpretou como um aceno de despedida. Quase silhueta na chama das
fogueiras, voltou-se ao meu chamamento:
- Simão, não o terás de negar
três vezes!
Concentrei-me nos meus
pensamentos. Ali estava eu, pagando pelos meus próprios pecados, impedindo que
sacrificassem um inocente. Mais profundamente me ferira o remorso do que as
vergastadas de Pilatos ou as injúrias dos judeus.
Sorri para Simão, que se
infiltrava no arvoredo.
- Não terá também de cortar a
orelha de Marco! - murmurei.
Atiçaram as fogueiras e a caruma
estalou em ondas de calor. Um grupo de lanceiros impeliu-me por uma vereda
sinuosa ao mesmo tempo que um chicote baixava abruptamente sobre os meus
ombros. Por um minuto, julguei desmaiar e foi através de uma névoa
subconsciente que rascunhei na menta as figuras de Anãs e Caifás. Como me
pareceram grotescos nos seus éfodes de linho caro bordado com gemas preciosas!
Despertei do mórbido sonambulismo
que me entorpecia os sentidos a caminho do Sinédrio onde Pilatos desenrolou uma
fileira de perguntas às quais não respondi como era óbvio.
Uma delas impunha-se aos meus
ouvidos: Que é a verdade? Não, ele não sabia onde estava nem o que significava.
Porque Ele, o nosso Mestre era a Verdade.
Quando me trouxeram para fora e
me açoitaram com o azorrague, as cordas que amarravam a minha cintura à coluna
de mármore, não pareceram tão duras.
Uma estranha sensação de torpor
aveludou os golpes e ensurdeceu a vozearia nos meus tímpanos, entumecidos de
sons. No entanto, a minha consciência permanecia desperta e a minha alma
enchia-se de um extraordinário regozijo. Eu estava ali pelas minhas
transgressões e se recebia vilipêndios em público, devia-o a erros cometidos, a
vícios de que não quisera abster-me. A justiça estava a ser aplicada na pessoa
certa. O castigo que estavam a infligir-me não era mais do que reto,
equitativo, conforme o direito.
Uma frase rouca, mais cava do que
ríspida, vinda não sei de que abismo ou inferno, atravessou o meu cérebro:
- Quem imaginas tu que és? Queres
tomar o lugar Dele? Aspirar à celebridade? Que espírito ingénuo o teu!
Não reagi. Apenas balbuciei:
- Este é o meu lugar…
Uma gargalhada feroz trespassou
os meus tímpanos como miríades de flechas que traduziam também os gritos e
insultos das gentes do exterior.
Creio que o meio adormecimento
que me amolentava não era mais do que a perda de sangue que borbulhava à volta
da coroa de espinhos e se desfiava em rios quentes e vermelhos, tornando-me
irreconhecível.
Toda a compaixão e misericórdia
divinas passaram pelo meu rosto como um vento morno, alísio, enovelado em rolos
de algodão que me enxaguavam a fronte e transformavam a dor numa gigantesca
pétala perfumada.
Não me lembro se caí. Não me
contorno ao longo do asfalto, sobraçando um grosso madeiro, apupado pela turba
multa.
Em turbilhão, os pensamentos
retornaram. Era assim que estava correto. Não lera na lei mosaica que o culpado
devia ser punido pelos seus delitos? Não tivera o conhecimento profundo dos
deveres morais, das virtudes e dos mandamentos? Por que os infringira? Por que
pusera em plano superior, os bens aparentes, as riquezas materiais, as
adulações e falsas promessas, correndo atrás de ilusões que encobriam
perfídias? E ia um homem impoluto, nobre e corajoso, sofrer pelo meu desvio,
depois de tanto ter insistido na defesa da minha salvação? Não. Não o
permitiria. A minha carne, os meus ossos subjugar-se-iam ao flagelo do
arrependimento amargo por ter desbaratado tanto tempo e, se merecesse perdão,
consolar-me-ia no refrigério que do Alto seria derramado sobre mim.
Neste preciso instante, a mesma
casquinada cruel e sardónica me advertiu:
- E com toda essa contrição
absurda esperas que os céus se rasguem para acolher o teu sacrifício! Salvas-te
só a ti, porque ninguém se dará ao trabalho de se imolar e a humanidade cada
vez mais se afundará no caos de um galvanizante egoísmo. Simulada modéstia, a
tua!
E com um trejeito de falsete,
concluiu:
- Veremos se manténs a mesma
decisão e esse mesmo estoicismo mórbido, quando o carrasco te cravar os pregos
nos pés e nas mãos.
Voltei à realidade ao ouvir que
me chamavam com a súplica:
- Lembra-te de mim quando…
Dei por mim já erguida, pregada
no tronco, suspensa por uns braços que não sentia serem os meus e por uns
membros inferiores amolecidos e inertes. Uma brisa fria deslizava por entre os
meus cabelos pegajosos, quase ressequidos mas, longe, eu conseguia divisar a
copa das árvores fustigada pelo vento.
- És o bom ladrão, não és?
- Lembra-te de mim quando ao…
- Não sou quem tu pensas! Quis
tomar o Seu lugar… Ele não aceitou.
- Por que dizes isso?
- Não sinto dor… É tudo tão
irreal! Acho que misturei os sentimentos. Sinto-me confusa.
- Engraçado! Onde está o meu
camarada?
- …És um dos seus discípulos?
- Não! Nenhum deles fugiu.
- Mas afinal entregaste-te, por
quê?
- Achas bom e justo que um inocente
morra no lugar de um pecador?
- Realmente, não. E o resto da
humanidade?
- Não pensei nisso.
- Ele pensou.
- Eu não quis assumir o seu
poder. - exclamei com veemência.
- Mas agiste como ser humano, com
inteligência de humano, com a tua compreensão terrena…
A minha prolongada mudez
inquietou-o.
- Ouviste?... Ouviste, não
ouviste?
Uma indefinida e acalentadora
emoção me inundou com a ideia nítida e repentina de uma madrepérola depositada
no seu apropriado guarda-joias. Respondi-lhe:
- Estarás com Ele no Paraíso.
Enigmático, obtemperou:
- Quem sabe!... Olha, dar-te de
beber.
Enfiada na ponta de uma lança, a
esponja embebida em água e vinagre, inexplicavelmente aflorou os meus lábios e
imobilizou-se, pressionando-me a fronte.
…………………………………………………………………………………………
- Tiveste um pesadelo? - ouvi - Afinal
que foi que aconteceu?
Levantei-me do chão. Não tinha
saído do quarto sequer. A madrugada ainda não rompera. Voltei para a cama.
Enfiei-me entre os lençóis. Tapei a cabeça e chorei. Chorei amargamente. Mais amargamente
do que Pedro.
Uma mensagem escrita num teor de um realismo excelente que demonstra uma dor e um sentido de compaixao !!!
ResponderEliminaradorei madame AURORA
TO ANDRADE
Gostei que tivesse comentado.
EliminarDemonstrou ser uma pessoa sensível e lúcida. Nem sempre isso acontece.
O próximo artigo é sobre o 25 de Abril. Passaram 40 anos. Em que se mudou?
Júlia Mendonça – Lisboa - Querida Amiga: Vou dizer-te o que talvez te surpreenda. Não gosto de internet, de Facebook ou de blogs, porém abri uma exceção para apreciar o que tu criaste e fiquei encantada com o teu conto da Páscoa mas não surpreendida pois conheço há muito os teus excelentes dotes. Bem hajas, pois, pelo prazer que me proporcionaste.
ResponderEliminarSó a tua forte e sincera amizade te inspiraria palavras tão gentis mas imerecidas.
EliminarJá somos duas. Também não simpatizo com estas “modernices”, embora concorde que esta é a forma mais prática e confortável de transmitir e corrigir, forma que dispensa os químicos e a borracha. Não nego esta forma de alargar horizontes; só condeno certos fins para que são utilizados estes métodos. Porque a mente humana é tortuosa.
Minha filha Florbela, que gere tecnicamente o blog, foi quem teve a ideia. E eu aderi, pois é mais fácil comunicar, uma vez que não posso custear as minhas próprias edições. No entanto, para alem do que tenho publicado na imprensa e ganho nos concursos, julgo que tenho de pensar em editar as próximas obras. “La noblesse oblige”. Entretanto, prevalece a minha gratidão por teres comentado e também por confessares uma verdade que eu corroboro, pois além de não gostar deste tipo de progresso suscetível de ser mal aplicado e correr o risco de ser apelidada de “antiquada”, sempre acrescento que não percebo nada disto, chegando a pedir auxilio à neta de doze anos. Cá para mim, estamos na época das “enfants terribles”
Em breve, responderei, na íntegra, à tua carta, de onde tirei o excerto de hoje. Fica bem!