Conto dedicado ao Dia do Pai,
homenageando um Pai excecional: o meu.
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Naquela manhã de domingo, ainda
de cores mal definidas, levantámo-nos ao som da gabarolice do nosso pintassilgo
e tomámos o pequeno almoço. Sorridentes
e joviais, despedimo-nos da mãe, nada convencida do êxito da nossa decisão e
partimos em direção à aldeia, distante da cidade uma légua.
Na véspera, eu e o pai tínhamos
decidido dispensar o comboio e ir a pé, aproveitando o ar esplêndido da
natureza.
- Nem pensem numa coisa dessas!
-contrapusera a mãe. - Vão chegar estafados e cheios de pó. Isto… se chegarem,
se não se enfadarem e voltarem para trás. Nem quero imaginar como vão ficar
esses fatos.
Iniciámos o percurso da estrada,
ladeada de choupos cujas raízes mergulhavam em córregos de água que espreitava
entre tufos de relva.
Sentíamo-nos livres como
pássaros, no meio de uma atmosfera que parecia só nossa. Eu saltava, corria,
abria os braços, gritava com delírio. O pai, mais comedido e meticuloso,
apalpava o terreno, ponderava os passos, não fosse enfiar os sapatos
cuidadosamente engraxados, numa curva barrenta ou declive inesperado.
O ruído de um carro de bois
aproximou-se e o homem que o conduzia saudou-nos.
- Falta muito para chegar à
freguesia de…? - perguntou o pai, certo da resposta.
Com expressão séria, o interpelado coçou a
cabeça e respondeu:
- EH! Fuh”! Ainda têm muito que dar à perna.
- Mas vai-se por aqui, não vai?
Vai-se, vai-se! Não há outro
caminho! Eu dava-vos boleia mas vou ficar aí adiante!
- Não se incomode. Vamos bem…
O homem casquinou uma gargalhada.
- Não me incomodo, não sou eu que
vos carrego!... Boa viagem!
Desapareceu num atalho. Quando o
sol apareceu no contorno das colinas, a manhã começou a despontar.
Eu vestia uma roupa muito fina,
de saia rodada e gola de renda, ao gosto da época. O meu pai começando a sentir
os primeiros efeitos do calor, desatou a gravata e enrolou-a na algibeira do
casaco. Envergava um fato completo, com colete de seda. Ambos estávamos
preparados para uma solenidade e não para uma digressão desportiva.
Nenhum de nós pensou no estado
lastimoso em que as nossas vestes se iriam tornar e de que já davam indícios.
Muito impróprios para uma cerimónia religiosa ou para um banquete festivo, onde
estaria representada a “fina flor” dos camponeses e lavradores daquele rincão,
de que os avós eram bastiões, pois empregavam muita gente nos campos e a cuidar
do gado.
De repente, imobilizei-me.
Desejei ardentemente um “toilete”. Em tais circunstâncias, o tronco de uma
árvore serve para nos esconder.
- E papel?
Perante o meu desconforto, o pai
riu-se.
- Pega uma folha da árvore!
- E se vem alguém?
- É capaz de vir um regimento.
Conforme pude, libertei-me
daquela aflição, consciente de que, em casa da tia, encontraria água e sabão.
Estaríamos a andar há umas boas
duas horas, o caminho começou a estreitar e o escasso arvoredo que o sombreava,
deu lugar a extensos arrozais que pareciam não ter limite.
Ao longe, lobrigava-se um casario
de telhados cinzentos e um esbranquiçado campanário, destacando-se na serrania.
- Será aquela já?
- Não sei, não! Parece que anda
para trás, à medida que avançamos.
- Isso é ilusão de ótica. Só queria
saber se é aquela.
- Vem, paizinho! Está ali uma
casa amarela. Informam-nos, de certeza.
Nem sequer cão tinha. Guardava
alfaias e estava abarrotada de palha.
De súbito, o pai reparou na ponte
que atravessava um dos campos de arroz que terminava num aglomerado de
ramagens.
- É a ponte da linha férrea. Se
seguirmos por baixo, na sua direção, vamos ter a um apeadeiro.
- E apanhamos um regional?
- Ou sim ou não…
- Não vamos ser pontuais ao
batizado…
- Não começam sem ti. És a
madrinha!
- Só quero é chegar a tempo de me
lavar e endireitar estas roupas. Já viste o estado em que estamos?... Que horas
serão?
- Ainda falta muito para o
meio-dia!
- Ao meio-dia chega o padre!
- Bem… afoitou-se o meu
progenitor. – Vamos seguir a ponte?
- E se nos perdermos?
- Olha! O comboio vem aí, não
vem?
Uma composição de mercadorias
deslizou pelos rails e estacou, interrompendo a marcha.
- Que se passa?!
- Olha, viu-nos e ficou à nossa
espera!
- É! E puxa-nos por um guindaste.
Ao fim de alguns minutos os
vagões retomaram o trajeto e o meu coração deixou de acelerar
- Vamos experimentar, paizinho?
- Não temos alternativa.
- Mas vamos ficar todos molhados!
- Com este calor… enxugamos
depressa!... Olha!
O “rápido” passou sobre as nossas
cabeças. Uma vaga esperança nos animou. Entre o silêncio e o rechinar de um ou
outro inseto, aquele sinal de vida decidiu-nos a descer aos vastos terrenos
alagados onde mal se descortinavam pedaços secos de terra para colocar as
plantas dos pés.
As peripécias começaram de
imediato. Com prodígios de equilíbrio, saltávamos de torrão em torrão, na sua
maioria lamacentos, encobertos por tufos que eram albergue de mosquitos. Lençóis
de água a perder de vista, salpicados por raios de sol coruscante que incidia
sobre as nossas pálpebras, obrigando-as a fecharem-se.
Num momento, o pai
desequilibrou-se e caiu no lodaçal. Gritei mas ele depressa se ergueu,
barafustando. A água dava-lhe pelas tíbias. Olho em redor.
- Não se vê um carreiro seco.
Será sempre assim até ao extremo?
Desatei a rir, não sei se de nervosismo
se de hilaridade pela figura descuidada que estava na minha frente. Meu pai
tinha arregaçado as calças até aos joelhos e desapertado os botões da camisa
depois de pôr o casaco ao ombro.
O pavor invadiu-me ao
certificar-me de que fosse para a frente ou recuasse com o objetivo de alcançar
qualquer das margens para me sentir em segurança, seria tarefa que me exigiria
um esforço inaudito, se quisesse impedir um mergulho de não sei quantos metros
de profundidade, pois o terreno era muito irregular.
As lágrimas assomaram ao canto
dos olhos e prestes secaram ao ouvir um grito na marginal de onde tínhamos
vindo.
As quedas e escorregadelas
sucederam-se, pois mal nos equilibrávamos, os montículos desfaziam-se e
escorregávamos até à água, coberta de uma espuma aquosa, esverdeada, uma
espécie de limo assaz viscoso para que se soltasse às nossas sacudidelas.
Outro comboio desfilou, apitando,
triunfante.
Sujos, fatigados, esfomeados, nem
forças havia para o sentido de humor que o pai sempre tinha.
Na faixa estreita que circundava
aquela enorme planície alagada, uma mulher apareceu, vinda não se sabe de onde,
acompanhada de um rafeiro que ladrava sem cessar.
- A mulher está a dizer para
sairmos daqui.
- Boa… Pode vir ajudar-nos? -
gritei.
Pela gesticulação, significou que
devíamos regressar ao ponto onde ela estava e ouvi-la, simplesmente.
Após alguma hesitação, com
extrema cautela, conseguimos mostrar à criatura o estado caótico em que nos
tinha posto o desejo de encurtar o passeio, seguindo a ponte por onde só transitavam
veículos do Caminho de Ferro.
- Para onde os senhores querem
ir? – perguntou ela, meio séria.
- Para a aldeia de…
- Ainda têm umas duas horas pela
frente… O cão não morde. Quieto!
- Cheira-lhe a família. Eu também
tenho uma cadelinha!
Vamos para um batizado. Esperamos
chegar a tempo.
- A que horas marcou o senhor
padre?
- Meio-dia!... Saímos de casa às
seis da manhã…. São…
Ao impulso de tirar o relógio de
bolso, o pai exclamou:
- O relógio… Perdi o relógio.
Deve ter caído na água.
A mulher levantou a face para a
superfície azul, sem nuvens, que o sol absorvia e replicou:
- Meio-dia está quase… Mais uma
horita a estugar a passada… Não tem nada que enganar. Seguem sempre em frente e
ao chegar ao apeadeiro é só subir a ladeira. Não saiam é deste carreiro que divide
os arrozais.
- Vamos andar à volta!
- Pois!...
Quase secos mas imundos, depois
de um tempo que nos pareceu interminável, chegámos ao local onde paravam os
suburbanos. Aí nos esperava a carroça de um dos tios, puxada por dois fogosos
cavalos.
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