sábado, 20 de abril de 2013

Maria Luisa

Maria Luísa, com a atriz Carmem Maura, à esquerda, no intervalo de uma filmagem


20 de Abril de 1922 – Dezembro de 2006

Preparava-me para encerrar o salão e ir almoçar, quando uma figura feminina assomou na entrada e se aproximou.
- Posso ver a exposição? Vi o cartaz na rua e decidi subir.
Vestia com elegância um casaco de Inverno cor de tijolo e usava uma boina artisticamente inclinada sobre o cabelo, cujos reflexos, entre o ouro e o platinado, me atraíam o olhar com insistência.
Vivia em Lisboa e estava no Porto, de passagem, para vender um apartamento que adquirira por exigência da vida profissional do marido, de quem, na altura, decorria um processo de divórcio.
Depois de relancear a vista pelas esculturas expostas, adquiriu a miniatura de um violino de madeira de cetim. e marfim.
Aceitei o convite para passar uns tempos na sua casa no Restelo, num sétimo andar virado para os moinhos do Caramão da Ajuda.
Foi um período muito pacífico, durante o qual desfrutei da sua bela forma de ser e finura de trato.
Os nossos gostos conjugavam-se, facto que nos estimulava a assistir a eventos culturais, inclusive espetáculos e concertos, especialmente de música clássica. Apaixonada pela polifonia gregoriana, cantava na missa dos domingos, como coralista, no mosteiro dos Jerónimos e ensaiava no piano da sala comum, os trechos musicais inspirados nas lições da afamada professora Luísa Almendra.
Maria Luísa conversava com elegância. O seu “charme” cativava. confecionava pratos com requinte, pondo neles muito de inspiração francesa. As visitas eram sempre recebidas com a bandeja onde brilhavam os cálices e os licores.
Era uma senhora com muita atividade, com o tempo sempre preenchido e não evidenciava a idade que realmente tinha, dado o ar juvenil e o sorriso bonito, ex-libris de uma pele sedosa, bem tratada.
Quando não usava boina, punha um laço de tule negro a aparar-lhe a trança enrolada na nuca.
Fora casada uma primeira vez com um enfermeiro que partiria mais tarde em missão para o Ultramar. Muitos anos ficou desconhecendo o seu paradeiro o que a obrigou a considerar-se consorciada possivelmente com um morto, pois a Concordata não autorizava a separação religiosa sem que o corpo tivesse aparecido.
Só muito tempo depois, a situação foi legalizada e ela pôde matrimoniar-se com Eduardo, elemento superior da Kodak, de quem teve três filhos: Jorge, técnico numa multinacional, Ricardo e José Luís, arquiteto.
A todos eles, esforçou-se por dar uma educação vocacionada para a música mas só Ricardo seguira o desejo da mãe e era instrumentista de oboé na Ópera de S. Carlos.
Os violinos permaneciam debaixo da cama do quarto de hóspedes e o piano da sala era agora a companhia esporádica dos seus ensaios litúrgicos.
Parte da sua vida, aplicara-a cuidar dos irmãos, pois ficara órfã dos pais, ainda muito jovem, ao cuidado dos avós e aplicara os seus conhecimentos de enfermagem trabalhando na Petrogal e em serviço ambulatório na casa das infantas de Bragança a quem dava injeções. O segundo casamento conferira-lhe um estatuto de distinção e classe que continuou mesmo depois do divórcio.
Livre e independente, entregava-se, na época em que a conheci, a atuar em pequenas metragens e filmes publicitários assim como em pequenos “castings”.
De todas as peripécias que me contou, concluí que o destino não a compensara devidamente. Personalidade arguta e inteligente, dotada de um enorme sentido de solidariedade e ânsia de viver, desafiava os seus oitenta anos com um rosto, uma capacidade de ação e uma agilidade que a faziam aparentar muito menos e a vocacionavam para sempre renovadas experiências. Na data em que eu passei uma temporada em sua casa, organizando os seus arquivos e rascunhando a sua biografia, para além do seu quotidiano, aprendia danças de salão e, mais tarde, soube que frequentava a piscina.
Evidenciava uma forte alegria de viver e raro era o dia em que não saía de casa, a pretexto de nada, para respirar o ar do exterior, assistir a um evento ou sentir o pulsar da natureza.
Mas como eu disse antes, sem que nada fizesse prever uma armadilha, um dia, elementos da família, recorrendo ao estratagema de um Lar de idosos precisar de uma enfermeira, valendo-se do seu entusiasmo em auxiliar o próximo, aceitou entrar naquela instituição donde nunca mais saiu.
Uma amiga comum que a visitou algumas vezes, dizia-me, por carta, que Maria Luísa não parecia a mesma. Chorava constantemente, e tinha perdido todos os seus atributos. Desfigurada e desiludida, perdera a radiosa beleza que se mantem quando se tem esperança e confiança nos que mais amamos.
A revolta que senti instigava-me a ir buscá-la mas não tive tempo. Dois meses depois, sucumbiu ao desgosto.
Tinham-lhe cravado um punhal bem no âmago do coração.
Quando quis saber o que fora feito da casa e do recheio clássico que a decorava e que ela, nos tempos áureos, renovou com reposteiros e pinturas, soube que tinham esvaziado o local e devolvido o apartamento ao proprietário.
Os abutres não se tinham feito esperar.
Hoje, restam as recordações dos bons momentos que passámos juntas e certos cenários que, em conjunto, construímos para deleite próprio: “O almoço com tâmaras”; “os cafés concerto no Centro Cultural de Belém”; “A Noite Transfigurada”, no palácio da Ajuda e os nossos serões, frente à TV, com o tabuleiro das refeições no colo de cada uma, seguindo o noticiário e as novelas, “uma seca”, como a maior parte dos programas televisivos.
Mas tudo tem um fim. Nada é para sempre. Lástima que tenha terminado da pior maneira. Maria Luísa não merecia…como tantos idosos para quem não perdura o direito de viver de acordo com as exigências do seu espírito.
E são sepultados em vida.


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