Maria Luísa, com a atriz Carmem Maura, à esquerda,
no intervalo de uma filmagem
20 de Abril de 1922 – Dezembro de 2006
Preparava-me
para encerrar o salão e ir almoçar, quando uma figura feminina assomou na
entrada e se aproximou.
-
Posso ver a exposição? Vi o cartaz na rua e decidi subir.
Vestia
com elegância um casaco de Inverno cor de tijolo e usava uma boina
artisticamente inclinada sobre o cabelo, cujos reflexos, entre o ouro e o
platinado, me atraíam o olhar com insistência.
Vivia
em Lisboa e estava no Porto, de passagem, para vender um apartamento que
adquirira por exigência da vida profissional do marido, de quem, na altura,
decorria um processo de divórcio.
Depois
de relancear a vista pelas esculturas expostas, adquiriu a miniatura de um
violino de madeira de cetim. e marfim.
Aceitei
o convite para passar uns tempos na sua casa no Restelo, num sétimo andar
virado para os moinhos do Caramão da Ajuda.
Foi
um período muito pacífico, durante o qual desfrutei da sua bela forma de ser e
finura de trato.
Os
nossos gostos conjugavam-se, facto que nos estimulava a assistir a eventos
culturais, inclusive espetáculos e concertos, especialmente de música clássica.
Apaixonada pela polifonia gregoriana, cantava na missa dos domingos, como
coralista, no mosteiro dos Jerónimos e ensaiava no piano da sala comum, os
trechos musicais inspirados nas lições da afamada professora Luísa Almendra.
Maria
Luísa conversava com elegância. O seu “charme” cativava. confecionava pratos
com requinte, pondo neles muito de inspiração francesa. As visitas eram sempre
recebidas com a bandeja onde brilhavam os cálices e os licores.
Era
uma senhora com muita atividade, com o tempo sempre preenchido e não
evidenciava a idade que realmente tinha, dado o ar juvenil e o sorriso bonito,
ex-libris de uma pele sedosa, bem tratada.
Quando
não usava boina, punha um laço de tule negro a aparar-lhe a trança enrolada na
nuca.
Fora
casada uma primeira vez com um enfermeiro que partiria mais tarde em missão
para o Ultramar. Muitos anos ficou desconhecendo o seu paradeiro o que a
obrigou a considerar-se consorciada possivelmente com um morto, pois a
Concordata não autorizava a separação religiosa sem que o corpo tivesse
aparecido.
Só
muito tempo depois, a situação foi legalizada e ela pôde matrimoniar-se com
Eduardo, elemento superior da Kodak, de quem teve três filhos: Jorge, técnico
numa multinacional, Ricardo e José Luís, arquiteto.
A
todos eles, esforçou-se por dar uma educação vocacionada para a música mas só
Ricardo seguira o desejo da mãe e era instrumentista de oboé na Ópera de S.
Carlos.
Os
violinos permaneciam debaixo da cama do quarto de hóspedes e o piano da sala
era agora a companhia esporádica dos seus ensaios litúrgicos.
Parte
da sua vida, aplicara-a cuidar dos irmãos, pois ficara órfã dos pais, ainda
muito jovem, ao cuidado dos avós e aplicara os seus conhecimentos de enfermagem
trabalhando na Petrogal e em serviço ambulatório na casa das infantas de
Bragança a quem dava injeções. O segundo casamento conferira-lhe um estatuto de
distinção e classe que continuou mesmo depois do divórcio.
Livre
e independente, entregava-se, na época em que a conheci, a atuar em pequenas
metragens e filmes publicitários assim como em pequenos “castings”.
De
todas as peripécias que me contou, concluí que o destino não a compensara
devidamente. Personalidade arguta e inteligente, dotada de um enorme sentido de
solidariedade e ânsia de viver, desafiava os seus oitenta anos com um rosto,
uma capacidade de ação e uma agilidade que a faziam aparentar muito menos e a
vocacionavam para sempre renovadas experiências. Na data em que eu passei uma
temporada em sua casa, organizando os seus arquivos e rascunhando a sua
biografia, para além do seu quotidiano, aprendia danças de salão e, mais tarde,
soube que frequentava a piscina.
Evidenciava
uma forte alegria de viver e raro era o dia em que não saía de casa, a pretexto
de nada, para respirar o ar do exterior, assistir a um evento ou sentir o
pulsar da natureza.
Mas
como eu disse antes, sem que nada fizesse prever uma armadilha, um dia,
elementos da família, recorrendo ao estratagema de um Lar de idosos precisar de
uma enfermeira, valendo-se do seu entusiasmo em auxiliar o próximo, aceitou
entrar naquela instituição donde nunca mais saiu.
Uma
amiga comum que a visitou algumas vezes, dizia-me, por carta, que Maria Luísa
não parecia a mesma. Chorava constantemente, e tinha perdido todos os seus
atributos. Desfigurada e desiludida, perdera a radiosa beleza que se mantem
quando se tem esperança e confiança nos que mais amamos.
A
revolta que senti instigava-me a ir buscá-la mas não tive tempo. Dois meses
depois, sucumbiu ao desgosto.
Tinham-lhe
cravado um punhal bem no âmago do coração.
Quando
quis saber o que fora feito da casa e do recheio clássico que a decorava e que
ela, nos tempos áureos, renovou com reposteiros e pinturas, soube que tinham
esvaziado o local e devolvido o apartamento ao proprietário.
Os
abutres não se tinham feito esperar.
Hoje,
restam as recordações dos bons momentos que passámos juntas e certos cenários
que, em conjunto, construímos para deleite próprio: “O almoço com tâmaras”; “os
cafés concerto no Centro Cultural de Belém”; “A Noite Transfigurada”, no
palácio da Ajuda e os nossos serões, frente à TV, com o tabuleiro das refeições
no colo de cada uma, seguindo o noticiário e as novelas, “uma seca”, como a
maior parte dos programas televisivos.
Mas
tudo tem um fim. Nada é para sempre. Lástima que tenha terminado da pior
maneira. Maria Luísa não merecia…como tantos idosos para quem não perdura o
direito de viver de acordo com as exigências do seu espírito.
E
são sepultados em vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Violar os Direitos de Autor é crime de acordo com a lei 9610/98 e está previsto pelo artigo 184 do Código Penal.
Por isso NÃO COPIE nenhum artigo deste blogue ou parte dele, sem dar os devidos créditos da autoria e sem colocar o link da postagem.
Muito obrigada!