(Um conto de Natal)
por Aurora Tondela
Quando a encontrei, o sol incidia
sobre a sua cabeça reclinada no espaldar de um banco de jardim. Ela olhava as
copas das árvores fixamente e revolvia nas mãos um pequeno objeto de porcelana.
O seu aspeto frágil mas doce e a
sua expressão de espectativa magoada levaram-me a aproximar sem que as minhas
botas soassem na areia.
O objeto que ela segurava entre
os dedos, era uma miniatura de tamanco holandês, decorado com flores e
contornado a ouro.
Ela reparou em mim, na minha
curiosidade e sorriu.
- Foi ele quem mo deu. Chamava-me
andarilho. - disse, indicando o que
me pareceu ser para ela uma relíquia.
- Ele?
- Sim, o homem que me ama. Deu-me
este sapatinho. Antes, deu-me uma borboleta. Está sempre a dar-me coisas.
- É seu namorado? Posso
sentar-me?
- Sente-se, sente-se! Não somos
namorados. Somos mais! Somos tudo um para o outro. Amor, amizade, carinho,
compreensão… camaradagem…
- Deus meu, ainda há disso neste
mundo? - pensei.
- E ele - indaguei, pegando no sapato.
- É bonito, não é? Ele
prometeu-me tudo. Tudo o que de bom, uma mulher pode desejar na vida. Uma casa,
ternura, ajuda-me a fazer as refeições, até cozinha para mim, pratos especiais.
Vai às compras comigo. Leva-me o pequeno-almoço à cama… Não acredita? E para
sublinhar as suas promessas, dá-me imensas coisas. E flore! Está sempre a
dar-me flores quando passamos pelos caminhos, pelos muros das quintas. De
repente, afasta-se de mim, vai ficando para trás e colhe uma flor.
- Conhece-o há muito?
- Não muito. Dois anos, se tanto.
Conhecemo-nos numa festa. Os foguetes voavam sobre as nossas cabeças.
Riu-se.
- Eu tinha muito medo que caíssem
em cima de mim e me magoassem.
- Por que é que tem este
sapatinho na mão, hoje, aqui, consigo? Por que é que está aqui? - perguntei,
devolvendo-lhe o sapato depois de o analisar.
Ela pareceu não ouvir,
refugiando-se numa imagem longínqua. Afigurou-se-me tão perdida que tive pena.
- É muito bonito!... Mas… Por que
é que está aqui? - repeti. - Por que é que ele não está consigo?
- Ele voltou para a família!
- Como?
Uma ideia me assaltou. Aquela
mulher tinha sido vítima da sua credulidade, da sua boa-fé.
- Como é isso? - inquiri,
revoltada.
- Não é o que pensa. Ele já não
precisa de mim.
Sorriu de novo e colocou a sua
mão na minha. Era como se eu é que precisasse de ajuda.
- Quando o conheci, era menos que
um farrapo. Bebia muito. Às vezes, era tanto o grau da sua embriaguez que caía
nas valetas. As pessoas passavam mas não ajudavam. Olhavam, indiferentes,
outras troçavam. Eu ficava junto dele. Conduzia-o até à praia e ele dormia com
a cabeça pousada no meu regaço. Eu orava. Pedia a Deus por ele, por nós. Eu
sabia que era sob o efeito do álcool que ele me amava mais. Por incrível que
pareça, os seus projetos idealistas, o seu ideal de amor e união, as
vergastadas da vida, a incompreensão, a ingratidão, a família, as pressões,
tudo se conjugava para a sua destruição. Ele era bom, íntegro, leal. Não me
mentia. E, sobretudo, amava-me sem egoísmo, com idolatria, respeitando os meus sentimentos,
fazendo-me crer que era alguém. E era. Era engenheiro e capitão do exército
reformado compulsivamente por causa do maldito vício. É que por causa disso,
tinha causado um acidente, felizmente sem consequências
A brincar, dizia algumas vezes: “És
uma joia que eu encontrei no lixo.” Referia-se a este mundo…Um lixo, não é?
- E agora? - disse,
impressionada, prevendo o jogo de um safado contra a ingenuidade da rapariga.
- Agora, voltou para a família! Esta
noite, sonhei com a avó.
- Avó?!
- Sim, a avó dele. Ela estava
encarrapitada na cabeceira da minha cama. Parecia um anjo da guarda. Sem asas,
claro!
Deu uma gargalhada que ecoou como
o tilintar de um cristal.
- Veja o que são os sonhos! – continuou
- Eu nem sei se era sonho! Eu estava meio acordada, meio a dormir. E ela
disse-me: Eles não olham a nada… Ele comparava-me a essa avó. Dizia que eu
tinha o sorriso como o dela
- Sim, mas o que queria dizer…
- Com o “eles não olham a nada”?
Ela sabe que ele está nas mãos deles… da família… Olhei-a, incomodada.
Não. Não estou doida! Eles têm o
poder económico e o resto. Têm tudo para o manietar, para o subjugar.
- Não me diga que se ele a
quisesse…-sugeri, indignada, visionando o esquema.
- Quer-me! Ama-me muito!
- Então por que espera para estar
consigo? Casar, talvez?
- Eles pressionam-no, sabe? Farão
tudo para o prender, não olhando a quaisquer meios, entende? Quaisquer!
O olhar dela fuzilou-me.
Sustentei-o como um dardo e retorqui:
- Morte?
- A comédia da morte.
Era demais para mim. Algo
escapava ao meu entendimento.
- Sabe… - murmurou, puxando-me
para ela e segredando. - Não estou louca!
- Mas esse homem usou e abusou de
si! Gozou-a! Você, para ele, não passou de uma aventura!
- Eu disse-lhe que ninguém me
pode fazer mal. Porque será castigado. Eu fiz-lhe sempre bem. Salvei-o! Ele,
agora, já não me quer! Já não lhe sou útil! Eu sabia que ia ser assim!
- E deixou?
A minha surpresa não concebia
limites.
- Que fosse assim? Nada se pode
contra o imponderável! Haverá uma nova queda se eu desaparecer da sua vida.
Fulminante! Não estarei para o segurar de novo.
- Olhe, minha querida senhora,
isso pode chamar-se altruísmo, abnegação, dedicação, entrega, amor, idolatria,
o que lhe parecer melhor mas uma coisa é certa, esse homem por quem nutre tão
elevados sentimentos, é tudo menos digno de si. E não passou de uma farsa toda
essa odisseia madrigalesca. Eu, no seu lugar…
- No meu lugar?
O mesmo sorriso indefinível.
- No meu lugar, sacrificava-se… se
o amasse! Entregava-se! Dava-lhe tudo, de confiança cega…
Não tive argumento mas ainda
perguntei:
- Que pensa fazer?
Olhou-me, surpreendida.
- Casar com ele…
- Mas se ele a não quer!
Encolheu-se nos seus pensamentos
e eu não lhe arrisquei palavra. Entretanto, ela retirava do interior da blusa,
uma foto onde, entre figuras femininas, ressaltava um rosto másculo, sério,
informal.
- São as suas amigas da Geórgia. -
murmurou.
Despedi-me com um soluço na
garganta. Vi nela, milhares de mulheres sofredoras, pacientes, tímidas,
esquecidas de si próprias. Confrontei-a com outras, malévolas, interesseiras,
déspotas, a quem eles, submetidos por cobardia, obedecem sem pestanejar.
Anos depois, tornei a cruzar-me
com ela. Veio ao meu encontro, sorridente, mais linda e mais nova.
Afastou-se do companheiro, que
lhe dava o braço e, em voz cantante que denunciava regozijo e felicidade,
afirmou:
- Eu não lhe disse que nos
casávamos?
Não me deixou abrir a boca
perante a minha estupefacção.
- Não lhe disse que iríamos ser
felizes? O amor é belo quando nos entregamos. Eu tive sempre confiança. Desejo-lhe
o mesmo, creia. Nunca esquecerei ter-me escutado naquele dia. Vê como eu não
era louca? - salientou, já a distância.
Fiquei a vê-la, de costas,
radiosa, saltitante ébria de alegria, enlaçada no braço do homem que não tinha
semelhança alguma com o da fotografia.
Acordei do meu espanto quando
ouvi uma voz, a meu lado.
- Vamos, meu amor? Demorei-me?...
Não sei como consegues adormecer com esta música tão alta!
Senti-me como se tivesse revivido
de um pesadelo, como se acabasse de salvar uma vida. Cingi-me a quem me
buscava, trémula, amedrontada, friorenta.
- Feliz Natal, querida!
- Ofereces-me uma flor? -
sussurrei, meigamente.
Ele estendeu-me a mão.
Era um malmequer.
Muito bonito este conto... Transborda sensibilidade. Adorei mesmo!
ResponderEliminarBeijinhos :)
Ainda bem que gostaste. Adoro escrever contos. Penso criar uma secção para dar mais largas à imaginação. Gosto quando os outros gostam do que escrevo. Afinal é para eles, para vós, que deixo as impressões da alma no teclado. Para que me conheçam melhor. E, com isso, ensine e aprenda sempre mais. Beijinhos!
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