de Aurora Tondela
Prefácio: Inicio hoje uma série
de considerandos sobre esta quadra que nos é tão querida. Tem a finalidade de
manter vivo, desde 24 de Dezembro até à passagem dos Reis, o espírito natalício
com as suas alegrias e os seus dramas.
Não esqueçamos, porém, que o
Natal é essencialmente das crianças e para as crianças.
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Natal - Angústia
O imperativo que nos norteia quando escrevemos sobre uma
época simbólica, é de molde a mostra-la sob uma faceta puramente lúcida, depois
de a fazermos ressurgir duma análise conscienciosa.
O objetivo que anima o escritor a falar, por exemplo, do
Natal, é, à parte a historiográfica da quadra e as solicitações do ambiente que
a sugere, uma tentativa de aproximação de classes, para que a lição do Amor que
o Presépio anuncia tenha razão de existir, tenha razão para repetir a sua
ancestralidade de heróica esperança e de perene renovação.
Ao tocarmos no Natal, o escritor que o observa duma
atmosfera mais ampla, mais imbuída de misticismo idealista, mas também mais
despida de falsas realidades, não tem outro intuito que tentar com a sua
advertência, uma fraternidade universal milhares de vezes apregoada, milhares
de vezes recalcada e outras tantas atraiçoada, pela força do instinto cego,
estúpido e desordenado dos homens.
Daí, a compreensão pueril, a sordidez do improviso, o
fanatismo desregrado ou a indiferença; o divórcio total duma boa ideia votada
ao ostracismo pelas causas estranhas dum dia a dia que não sabe trazer
esperança.
Quando nos propomos escrever sobre o Natal, sentimos o
cérebro arranhado por um estilete. Sentimos um cravo espetado no coração, pela
angústia do tempo hodierno que nós sabemos trazer um desejo de paz escrito no
mesmo pergaminho, puído e cansado pelas longas noites de vigília através dos
séculos. Um pergaminho que os homens lêem, compungidamente, de lágrimas já
secas, mas no fundo ciosos duma calma que se esvai na engrenagem do trabalho
quotidiano. Calma que eles tanto apreciam e em que, talvez e apesar de tudo, se
detenham a pensar, como um bem que se vai pouco a pouco escoando, tragado pelo
nada, pelas horas mal vividas, pelos momentos de alegria que as circunstancias
lhes oferecem, que eles não sabem aproveitar, de que eles nem sequer se
apercebem.
Nós, os que escrevemos, feitos do mesmo barro que todos os
mortais, sentimos agudamente que quanto mais o Natal se embriaga nas luzes e
nos arrebóiss, na musica e no bulício,
mais chora sobre o mundo dos homens. O mundo que eles vão transformando em
pão-nosso de cada dia sem fermento. Em
vida inteira passada a galope, saltando barreiras, caindo para se tornarem a
erguer, desbravando caminhos a talhe de foice, sorvendo o suor das têmporas em
cada noite de insónia, gretando por dentro, vivendo na incerteza do amanhã e no
temor das suas consequências.
Cremos que já nem pensam no seu quinhão de felicidade.
Estão metidos nisto até à medula. Submergiram-se sem condições e fazem parte
integrante que não se sabe onde os conduz.
Que interessa aliás o futuro, quando o presente é tão
tirânico, nos subjuga com tal intensidade, mal nos deixando a garantia dum raio
de sol?
No entanto, o Natal, como um parêntesis, sugestivo como
todos os parêntesis, não permite, pelo seu significado, que se pense em coisas
destrutivas, quando em cada ano já gasto nasce a raiz duma sempre depurada
primavera dos espíritos que convida a meditar e tentar de novo uma
recapitulação dos actos nas suas arestas mais limadas.
Nenhum homem, por menos humano, pode abstrair-se da verdade
que os sinos representam. Eles espalham a mensagem do Amor que gera prodígios,
da união que faz a força, da fé que remove montanhas.
Eles convidam. É um convite incisivo e gritante. Desce
pelas quebradas, infiltra-se na algidez dos crepúsculos, desliza pelas soleiras
das portas até tocar o húmus de cada vulto que circula nos lares, preso ao
sortilégio do Natal; preso ainda que seja apenas enquanto dura o Natal.
Mas a que convidam os sinos?
Eles convidam a que os festões galardoem todas as mesas e
se dêem mesas a todos os que pisam a face da Terra. Eles convidam a que se
aqueçam todos os abrigos e se dêem abrigos a todos os que não têm por tecto
mais que o infinito onde os seus olhos se perdem em busca de não sei já que
sagradas crenças ou duras tribulações.
Eles convidam aqueles que têm muito a possuírem um pouco
menos para aqueles que têm pouco gozarem de um pouco mais. Esse muito que,
distribuído equitativamente, daria um novo panorama à mentalidade do homem e
talvez o estimulasse a cuidar um pouco de si, da sua cultura e das suas
ambições.
Hoje, que apenas o dinheiro é o deus pagão de todos os
destinos, não podemos esperar que o espírito obcecado pelas solicitações do
estômago, tenha propensão para educar-se e procurar diversões mais de acordo
com os princípios dos nossos moralistas. Onde há fome não pode haver moral. E
quem sente, minuto a minuto, a verdade de que vive para subsistir, não pode
pensar que vive para viver.
São aqueles que, pelas circunstâncias especiais do seu
nascimento, não esquecem os seus irmãos, esquecendo as raças e as latitudes, os
únicos que ao auscultarem o mundo circundante, sentem maior ternura pelos
desprotegidos e não têm pejo de acusar os desníveis e as injustiças. Não podem,
porque o panorama é cruel e o sentem embutido na carne, falar das maravilhas do
Natal, como se falam às crianças.
Cada adulto, que já foi criança, sabe que cresceu muito
depressa, que gostaria de voltar aos seus tempos de menino de bibe, meter os
dedos no pudim, ajudar a construir o seu presépio ou a sua árvore, ir com a
família à Missa do Galo, aguardar com impaciência, quase frenesim, os presentes
de Natal.
Também sabe que nunca teve Natal, quando criança. Que nunca
comeu coisas doces, nem teve tempo de brincar.
Também sabe que o frio racha os ossos e galvaniza as
entranhas, mas que, cada um, cioso da sua batalha e da sua adversidade, não dá
aos outros margem para sofrer mais do que ele. Também sabe que se estendesse a
mão a todos, todos se acercariam de si, mas espera que lha estendam primeiro.
Também sabe que se usasse de compreensão lhe consentiriam
os deslizes próprios dos imperfeitos e talvez até os compreendessem. Mas todos
são piores do que ele.
Sabe que se trabalhasse para o bem comum, os outros o
imitariam. Mas ele prefere que o bem comum trabalhe para ele.
Por isso, perante esta mísera realidade, não podemos
venerar o Natal sem que uma névoa de amargura nos mareje a retina. Será talvez
porque vivendo o Natal num misto de saudade pelo que se desejaria que ele fosse
e de melancolia pelo que ele é, nós nos sintamos mais conscientes da
desconfiança que precede todas as nossas iniciativas. Daí, a nossa angústia, a
angústia do Natal, que o mesmo será dizer Natal do Amor. Desse Amor,
desesperadamente, sofregamente, buscado pela humanidade.
Por isso também, não posso, não resisto a perguntar:
Que somos nós mais que loucos?
Que vivemos mais do que uma existência de loucos?
Natal - A Doce
Melopeia
Tenho saudades do Natal. Do Natal do tempo dos meus avós.
Tenho saudades do confortável calor da lareira, do eloquente sabor das
rabanadas e das filhós. Tenho saudades da avó, sempre vestida com o seu traje
de viúva, delicada e branca, da garrulice das tias, cada uma com o seu temperamento
jocoso e hábitos peculiares. Tenho saudades de brincar com as fagulhas e do
crepitar intenso da caruma e da missa à meia-noite na igreja da aldeia onde o
padre fizera erguer um estábulo com figuras em movimento.
Na casa de meus pais nunca deixava de se armar o presépio e
o musgo campestre e espontâneo era elemento indispensável à decoração assim
como as miniaturas em barro.
A simplicidade crédula com que se festejava o Natal
adulterou-se por completo. Tenho saudades dessa festa em família, onde cada um
transmitia muito do seu passado e se rezava a ladainha de Maria, a mãe ditosa,
por imposição da minha mãe, católica fervorosa. Tenho saudades da chaminé e do
fogão a lenha que testemunhava a “descida do Pai Natal” com o meu saco de
brinquedos e guloseimas.
Os anos passaram e o Natal passou a ser mais propriedade
dos meus filhos, embora eu revivesse alguns pormenores da herança deixada pelos
meus antepassados. Mas o Natal não tinha já naquele tempo, a mesma expressão
valorativa para toda a gente.
Lembro-me de um dia assistir a um diálogo entre jovens.
Deviam ter uns quinze, dezoito anos. O mais aguerrido comentava o seu ódio pelo
Natal. Não pude deixar de estranhar e também de apurar o ouvido.
De facto, o que representa o Natal? Apenas o nascimento de
um menino muito especial que trouxe ao mundo a sua mensagem de paz, de
esperança e que, em defesa desses ideais, trouxe também o destino de ser
sacrificado por eles?
Peter Ducker disse, numa das suas máximas, que “os sintomas
mais visíveis são os menos reveladores”. É por isso que eu penso naquele
sentimento infeliz de um jovem mal desperto para a vida e para quem o Natal
nada comunicava, era antes o reverso do paradigma universal do Amor.
Faço-lhe justiça de considerar exacerbado o seu pensamento
e angustiadas as suas intenções Por trás dessa reação existe um recalcamento
gerado na falta de um ambiente familiar que lhe dê atenção e no acréscimo de
situações que o empurram para a desintegração social e que são a súmula de
carências extremamente imperiosas porque se prendem com os afetos, a
independência económica e a sua liberdade como cidadão.
São situações de choque, a ausência de carinho, de
compreensão, de apoio, da palavra certa no momento certo; situações que geram
traumas profundos mas nada leva a crer que este jovem, que diz odiar o Natal, o
odeie efetivamente porque, se assim fosse, desgraçados de nós, arrostando com a
culpa de não saber conduzir a juventude.
O que ele sente, isso sim, é a desumana trepidação do
quotidiano, a escassez de tempo para os benefícios do espírito a disparidade de
bens e de regalias, os extremismos que consomem as nações, as apreciações
controversas. O que ele sente são os erros, as catástrofes, as atrocidades
mundiais cometidas em nome duma falsa virtude, contra a igualdade dos direitos
humanos. O que ele sente é um Nata mensageiro de políticas interesseiras, de
soluções sub reptícias, de discriminação e desrespeito pelos que necessitam de
comer, vestir e calçar, contando os cêntimos, com destaque para os que
continuam poderosos, imunes e pachorrentamente tranquilos.
O que ele odeia é o Natal celebrado alegremente no meio de
uma humanidade que se destrói, quando cada dia, cada hora do ano. cada
circunstância do indivíduo deveria simbolizar
a ternura, a solidariedade, a paz, a prosperidade, que o Natal
renovadamente vem anunciando ao longo dos séculos, em defesa das novas
gerações.
Como pode este jovem apreciar com otimismo o Natal, se em
pleno século XXI vive gente abaixo do limiar da pobreza, se o futuro se
desdobra negro como um abismo, se cada um procura libertar-se individualmente
de becos sem saída, ignorando a união, o respeito, a normal e equilibrada
distribuição da riqueza? Como pode ele gostar do Natal, se os valores morais se
fragmentam cada vez mais e se quem devia dar o exemplo é o menos íntegro, o
menos honesto e não olha a meios para atingir os fins?
Olhando uma árvore de Natal com os seus enfeites e luzes
coloridas, uma gruta que descobre a alegoria do nascimento de um Menino
misterioso, a mesa com doces e bebidas, a prata dos chocolates, o Pai Natal com
o seu trenó carregado de presentes, quando, enfim, mais um fim de ano finge
ostentar panoramas diversos da realidade, este jovem, céptico e desapontado,
odeia, sim, os corruptos, os ambiciosos, os que fazem da dignidade humana, um
jogo de cupidez e sagacidade.
Mas ele pode transportar-se para todo um contexto de beleza
e harmonia e com outros jovens transformar o seu país, ser o seu espelho.
Mas como se tudo lhes é retirado?
Mas o Natal não é só uma lição de história. É, acima de
tudo, uma lição de humildade., uma lição que devemos seguir retirada de um
império magistral de conceitos que devem unir os homens, dentro do imperialismo
egoísta e orgíaco como era o dos romanos e é agora o dos partidos que se
arrogam de defensores democráticos para esconder o seu egocentrismo.
Belém foi descrita para perpetuar a paz e a justiça entre
os povos, num clima de segurança e confiança recíprocas, sem diferenciação de
classes.
Só assim o Natal pode fazer ressoar o seu verdadeiro timbre
e significado, longe da mentira ilusória que, por uns dias, parece proclamar ao
mundo que tudo está bem.
Só assim, este jovem desiludido, como muitos outros jovens,
pode acreditar no Natal e viver em otimismo o seu próprio Natal.
O Natal que lhes devemos.
O Boi e o Jumento do
Natal
Eu, que adoro animais, sempre tive muito apreço pelos
animais do presépio, duas figuras imprescindíveis com o seu papel a
desempenhar, pela sua utilidade e simpatia.
Guerra Junqueiro, num dos seus poemas sobre os bois, dizia
que “eram mansos, leais, com coração de passarinhos”. O jumento, teimoso mas
sempre disposto a servir, acompanhou sempre o homem desde os primórdios da sua
existência, na carga e no transporte. Foi aliás, valorizado ao conduzir Jesus
Cristo na sua entrada triunfal em Jerusalém, coberto de folhas de palma. Anos
atrás, levou Maria para Belém a fim de, com José, se recensear e, mais tarde,
na fuga para o Egito, galgou penhascos e desfiladeiros para furtar o
recém-nascido à fúria de Herodes. Por que não foi utilizado um cavalo? É
evidente que por razões económicas ou de linhagem. Só os muito pobres é que não
possuíam animais de vulto. Por outro lado, a Sagrada Família simboliza
serenidade, paz., harmonia. O cavalo era arma de guerra.
Não só por estas razões mas por outra, que me surpreende
que o Papa Bento XVI escreva um livro negando a existência destas criaturas na
gruta, junto à manjedoura.
Se foi invenção dos judeus, que mal tem? O Velho e o Novo
Testamentos estão cheios de episódios cuja veracidade poder-se-á questionar;
contudo, os símbolos perpetuam o nosso fascínio.
Não concebo um presépio sem a presença acolhedora e o bafo
quente de dois animais que fizeram sempre, desde tempos imemoriais, parte
integrante de um quadro amado por todos, especialmente pelas crianças.
Difícil será erguer uma gruta sem a linguagem silenciosa
daqueles animais tão expressivos no seu profundo e terno olhar como se
estivessem conscientes da sua missão.
O que eu lamento é que sua Santidade venha desmentir um
hábito tão ancestral, sejam quais forem as fontes consultadas.
Enfim, eu julgo que há assuntos do mundo moderno e da
sociedade cristã a tratar, a debater, muito mais pertinentes e urgentes do que
esse, que pertence à história milenar de séculos em que o Natal se anuncia completo
e se desvenda tal como deve ser encarado: uma lição de Amor.
Natal e Contraste
Tem corrido muita tinta a meu respeito. Amigos, sinto-me
confundido. A minha celebridade corre mundo; mantem-se viva na memória dos
homens e todos os anos sou homenageado por todas as idades com requintes de
grandeza e ostentação e apenas resquícios de ternura.
Pergunto-me se é o açoite da invernia que estala nos
corações e os obriga a preocuparem-se com os seus próprios desaires sem
cuidarem nos dos outros e suas origens. Pergunto-me se a lareira, quando
aquecem os pés e assam o toucinho ou saboreiam o primeiro cálice de vinho doce,
eles pensam realmente em mim e no símbolo que eu represento ou em si próprios:
nos defeitos que os acusam ou nos interesses que os norteiam.
Caturrices de velho! Que almeja ser cada ano que passa,
mais fraternidade nas almas, mais comunhão dos espíritos, mais complacência
humana, face às vicissitudes que a própria humanidade provoca sem se lembrarem
de prover à sua insensatez desmedida.
Por que se comportam os homens tão levianamente? ´É uma
pergunta que trago todo o ano no saco e para a qual, em nenhuma parte do globo,
encontrei ainda resposta.
Eu gostaria, amigos, que fosseis mais delicados para com os
vossos semelhantes. Cada um possui um estômago mas também pulsa nele um coração que
foi no berço moldado em carinho e um cérebro que cresceu com os seus ideais
igualmente audaciosos de realização. Se aplanásseis as dificuldades com o
pensamento voltado para o sofrimento alheio, a existência não pareceria tão
triste, tão desprovida de originalidade; tornar-se-ia mais simples para todos e
os espinhos das rosas dobrar-se-iam à vossa passagem para não vos rasgarem o
vestuário. As pedras encolher-se-iam nas calçadas para não vos castigarem os passos.
Não se toldaria a água onde a vossa sede quisessem mitigar. Não se envenenariam
as iguarias por que o vosso paladar suspirasse. Quando vos olhásseis nos olhos,
não os desviaríeis com embaraço. Quando apertásseis as mãos, não as sentiríeis
flácidas e desconfiadas. Quando falásseis dos vossos acontecimentos, fá-lo-íeis
com desprendimento e verdade sem procurar camuflar as vossas ações.
Amigos! Vós, hoje, nesta época que decorre, não sabeis
escutar, não sabeis rir, não sabeis viver. Não tendes tempo para viver!
Procedeis como seres atacados de uma efervescência encolerizada e pérfida, que
vos manieta o sentimento e vos transforma em títeres duma sociedade que vós
próprios, inconscientemente, ajudais a construir e de que passais a fazer
parte. Essa sociedade que vos rói por dentro e vos fará cair um dia, sem
contemplações. Quem olhar depois o vosso rosto esverdeado e inerte, concluirá
que não fostes grande coisa; não vivestes no sentido intrínseco da normalidade
e da simplicidade; fizestes do vosso mundo, um caos e violentastes impunemente
as exceções que, por serem tão poucas, se apagam com prudência na penumbra.
Privaste-vos da pura alegria, a alegria virgem dos espaços.
Nem sequer vos sobrou a hora de gozar em plenitude, uma
réstia de sol…apenas porque fostes estúpidos e incoerentes.
Talvez porque sou um velho milenário, senhor de muitos
segredos e cioso das certezas que adquiri na minha viagem pelos séculos, pelo
muito que observei e pelo muito que senti, posso afirmar sem receio, que a
vossa ciência, ao serviço de uma humanidade melhor, conforme apregoam, vos
torna breves, loucos e volúveis como meteoros.
Amigos! A vossa comédia é grosseira. E vós sois uns pobres
palhaços, joguetes da vossa personalidade mal orientada, onde não cabe um
mínimo de justiça, reflexão ou tolerância.
Se tendes ao vosso alcance uma inteligência que desvenda
mistérios, um espírito que fomenta lodaçais, uma consciência que se exalta pela
solidariedade em cada vivência que acontece, por que fazeis dessas vivências um
martírio? Por que displicentemente, saltais sobre os obstáculos, fazendo por
ignorar as lágrimas e a ofensa que ides deixando para trás?
Por que contornais a caridade, ignorando-a duma forma
extremista e tendes na vossa agenda uma indiferença e uma maldade que vos nega
a vossa qualidade de homens de bem?
O egoísmo é o vosso oráculo!
Em toda a minha digressão através dos povos, revendo
posições e estudando costumes, a certeza de que enquanto fordes substituídos,
enquanto for permitido à humanidade mudar os homens, há sempre esperança de ela
os modificar.
É por isso que eu aprecio a morte, essa decrépita horrenda
que vos atemoriza porque vos aniquila, vos recambia para o nada donde viestes
mas cujo valor fará despertar novas consciências para a perspetiva de um futuro
melhor.
É por isso que eu amo as crianças de uma maneira
idolatrada, porque são indefesas à mercê dos adultos, atiradas para o mundo dos
adultos sem a menor contemplação pela sua pequenina e inocente inexperiência;
porque são íntegras quando abrem os olhos e contemplam as esferas do seu
universo pela primeira vez com alegria inconsciente mas sã, tão longe das
exigências dos mais crescidos, dos seus interesses mesquinhos, da sua depravada
sedução. Agora, pergunto. Por que imitam as crianças, os adultos?
A esperança supera a minha caminhada porque acredito e
espero na juventude, mesmo quando ela se desvia e toma atitudes que os outros
não toleram nem relevam antes de procurarem saber as razões que levaram estas
idades a conceber distúrbios e a remar contra a sua própria natureza.
É por isso que apesar das consequências desastrosas da
maior parte daqueles que pisam este tablado, e das calamitosas conclusões com
que me deparo, eu amo os velhos, embiocados nas suas desditas, curvados sob o
peso das desilusões, humilhados pela novidade, feridos por chagas que nunca
cicatrizaram, espezinhados pela adversidade e desprezados pelas gerações que os
que se lhes seguem, esquecidos a um canto, do tempo em que foram moços,
irreverentes e incompreendidos.
Não penso nem desejo que seja este o preço da vida; a
cláusula permitida ao homem para respirar sete palmos de terra e sufocar sob
toda uma superfície de negação quando tudo está consumado e a sua hora chegou.
Eu sei que se não deve acabrunhar o pensamento. Olhai a
mesa da Consoada! Resplandece com as minhas árvores, os meus brinquedos, os
meus chocolates e eu vejo os olhos radiosos dos garotos e o sorriso enfeitiçado
dos seus familiares, que fizeram tudo isso por causa deles e vivem com o seu
regozijo.
Eu, o velho Natal, também me iludo, me agarro a milagres,
apesar das desproporções, das diferenças, porque amo a igualdade, a pureza de
intenções e temo pelas consequências da ausência de tudo isso que ajuda os
povos a sobreviver. Mas não posso deixar de recolher-me em meditação sobre as
realidades, ansioso de poder descobrir a cura de grande parte dos males que
contaminam os vossos ambientes.
Sossegai, porém! A esperança deste velho tonto e
experimentado continuará a cavar raízes fundas em cada lar, ansiando com a
força do desespero, pela vossa paz interior, pelo vosso mútuo entendimento,
pela vossa solidariedade recíproca.
Mas como diz o antiquíssimo adágio, “aos homens de boa
vontade”, a esperança trará nos braços o fruto do seu amor e só a eles, ela
contemplará com certezas duradouras e palpáveis. Aos homens de boa vontade,
sim.
Não haverá homens de boa vontade? Haverá ainda esperança
sem desânimo?
O pouco que vos é dado, por que não o engrandeceis e o
gozais?
E vós, que tendes tanto, se não fora conquistado à custa da
boa fé dos outros, se não tivésseis sido fraudulentos, poderíeis partilhá-lo.
Com a vossa febre de gananciosos, não sabeis o que isso é.
A esperança, amigos. Aí fica esse grande saco pendurado nas
vossas chaminés. Contem a mais bela dádiva do universo. E se fordes tolerantes,
também encontrareis a bonita fórmula da fraternidade….da caridade, antes mesmo
de saberdes onde aplicá-la, como aplicá-la.
Despeço-me. Até ao próximo Natal, verei em que melhorastes.
Também faço votos de que cada um dos vossos amigos ore por
vós, não para dar a ilusão da vossa fragilidade mas para vos persuadir de que
apesar das quedas, não estais absolutamente sozinhos.
A paz desça sobre as vossas cabeças nesta minha noite de
estrelas e recolhimento.
Pensai no que vos disse.
Eu vos abençoo.
Natal do Espírito
Que sabemos nós do Natal?
Desde o remoto tempo em que se inseriu no livro sagrado das
religiões o extraordinário facto do nascimento de Cristo, tão imbuído de
mistério e sortilégio que, atrás dele tem sido arrastado o coração da humanidade,
tinta em torrentes se tem gasto a comentar o conceito em que é tido, as
coordenadas que o estruturam, a beleza de que se reveste e o significado
transcendente que se lhe atribui. Mas, por muito que se escreva, se comente, se
pergunte, o Natal não sai dos limites que a inteligência humana lhe impôs e
tanto lhe basta. O seu objectivo, se fosse seguido integralmente, com
deferência e compreensão, para além de tudo o que esta quadra inspira de
festivo, feérico e teatral, creio que o fantasma da guerra seria o primeiro a
ser irradiado da imaginação dos homens, antes de se tornar na realidade brutal
que anula hoje a vida de criaturas indefesas, as que, ao exalarem em combate o
último suspiro, nem se quer se interrogam porquê, convictos da inutilidade da resposta,
e as que esperam, por cada gota de suor do seu rosto, em dias melhores que não
prometeram vir.
Não sei quem possa admitir o Natal, se ele é o protótipo do
antagonismo social. Nós saímos à rua e deparamos com um arraial de cores nos
fundos estrelados das montras, arraial que se reflecte nas pupilas do
transeunte e o apresenta a transbordar de emocionante expectativa, de
entusiasmo deliberado pelos dois que irá passar no conforto da casa, rodeado da
família, inebriado de presentes, brincando irradiante com os filhos, cooperando
com eles, vivendo o significado mais cómodo do Natal, obliterando a imagem dos
infelizes, talvez até porque nada pode fazer por eles; mas pegamos num jornal e
lá vemos, num lampejo gritante, a notícia da morte dum primogénito que uma
granada impiedosamente destroçou, como se o seu corpo e a sua alma fossem um
trapo, joguete do destino e este uma bolinha de bilhar empurrada por mão
inconsciente e pérfida.
Mas que é esse grão de areia no deserto imenso em que se
confundem os cadáveres de milhares de homens anónimos que sabem apenas o valor
dum estandarte pelo que ele lhes custa ao arrancar-lhes os pais, os irmãos, a
noiva, a casa, a terra que os viu nascer, ou sem outra perspectiva que a de os
marcar para o futuro, se têm a dita de regressar?
Mas lá vemos corpos ceifados em plena estrada pela
implacável ferocidade de uma morte de acaso e estúpida. Mas lá vemos as
querelas sangrentas, os crimes hediondos, a vontade animalesca de aniquilar,
tão contrário ao amor pelo semelhante, ao respeito pela sua parcela de
existência e pelas coisas que são sua propriedade.
Deambulando pelas artérias onde os festões coruscantes
fazem da cidade uma sinfonia de tons, onde se tem o garbo e a volúpia de gastar
sem contemplações no antegozo de contribuir com o seu quê de pessoal para a
consoada, cruzamos ininterruptamente quando não de atropelo, com todos esses
semblantes fagueiros que arremessaram para os dias seguintes a sua máscara
quotidiana.
E já sem nos perguntarmos se há alegria espontânea ou se
esta se forjou de encomenda para a solenidade da quadra, também, se descermos
ao escuso das ruelas onde o cheiro a humidade e a penúria se infiltrou, talvez
o quadro se nos apresente bem diverso: ou um doente sem remissão por falta de
cuidados, ou uma boca que pede pão, não se atrevendo a pedir um brinquedo, a
angústia nuns olhos dilatados pelo espanto das coisas interditas.
Sendo o Natal o pregoeiro da fraternidade universal, o
bloco onde se escreveu que junto ao presépio todos são iguais, todos terão o mesmo
fim e tiveram o mesmo princípio, como admitir que o desnível entre as camadas
sociais seja tão flagrante? Tão vexatório para os oprimidos; tão pomposo para
os bem-fadados? Questão de acaso? De derivação determinante de todos os
quadrantes que, movidos por forças obscuras e indizíveis que ultrapassam o
nosso entendimento, dá a uns o que retira a outros?
Seja embora um enigma perante o qual o homem se inferioriza
e atacanha, porquê então a evidência ameaçadora duma desigualdade tamanha?
Porquê palavras eruditas a culminar um ritual de séculos que apenas o hábito
enraizou e o vulgo não compreendeu. Ou será que numa época fértil em
arremetidas e matemáticas, como o está a ser a nossa, nos pode satisfazer a
versão bíblica de “bem-aventurados os pobres de espírito”. Põem-nos uma pedra
na mão e uma pena na outra e mandam-nos ficar quietinhos sem se nos dar a
possibilidade de perguntar para que serve tal anomalia. Pois quê! Desvendar o
que se achou por bem embutir de mistério é tarefa árdua; procurar analisar se
não mesmo descobrir a origem e a solidez desse mistério é tirar-lhe a
capacidade que possui de se rever despido de sofismas, claro e brilhante como
um reflexo de sol.
Olvidem o torvelinho das ruas, a euforia das luzes, o
movimento, a animação, o deleite das compras, a festa nos lares; conservem
apenas a alegria simbólica dum presépio onde jaz uma criança sem nada e ansiosa
de ternura e de paz, quem de entre todos testemunhará ao Natal, a simpatia que
hoje, como desde sempre, lhe tributam, quem o esperará com alvoroço? O costume
já nem forças teria para suportar um dia mais, igual entre todos. A austeridade
dum verdadeiro julgamento entre o homem e a sua natureza, só lhe traria o
enfado e o logro, o dispêndio duma energia em prol dum factor votado ao ostracismo
por comodidade por negligência. Se os tempos assim o decretaram por mudar o
legado dos nossos avós? E adeus Natal. Estarias consumado.
Reúnam-se os homens num exame de consciência, contritos e
severos, prometendo burilar as deformações morais que os caracterizam, tal como
o eremita em estado de desagravo e o Natal não terá mais a sua razão de ser. E
o poder imanente do Natal deixara de ter o seu valor efectivo. Se mesmo assim,
no meio da alegria e do ruído, do descongestionamento e da ficção, é mais
simbólico que imediato! Se pulsa mais pelas exortações nos altares que pela
compunção de quem assiste aos ofícios!
Onde a humildade dum Cristo despido entre as palhas?
Simbologia pura e simples. Nem nos ambientes abastados se procura ser
circunspecto, antes se dá largas à sede demais opiparamente se presentear o
Natal, nem nos meios indigentes há aquela ausência tranquila dos bens terrenos,
que vinculava a fonte do Divino Infante, mas uma ambição e inveja estampadas
nas fisionomias dos que desejam um pouco do que os outros têm.
Que as crianças, pelo menos, se entreguem ao significado do
Natal com toda a pureza deliciosa dos seus instintos, antes que a incúria e a
perversão do mundo as contamine.
É tudo quanto de profundamente sólido e altamente dignificante
o Natal nos pode hoje trazer.
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