domingo, 4 de novembro de 2012

Eurídice


Eurídice

23.10.2012

Chamo-me “Lôlis”.
Era esta a frase que respondia àqueles que lhe perguntavam o nome.
Quando fingia zangar-me por alguma teimosia ou diabrura e permanecia alguns momentos sem lhe falar, aproximava-se e dizia com ar comprometido:
- Vamos ficar “todo” amigos?
Eurídice nasceu em 1965, um ano marcado pela implantação da nossa fábrica.
Hoje, é uma bonita e atraente mulher, mãe de duas filhas encantadoras: Inês e Vera.
Gosto de olhar para trás e desenrolar como uma película cinematográfica, as variadas facetas desta criança “muito senhora do seu nariz”, habituada, como mais velha, a vigiar e guiar os irmãos. Quando veio ao mundo “a benjamim”, tinha ela 9 anos.
Mas recuemos uns tempos para recordar.
Eurídice revelou-se sempre uma garota esperta e inteligente, um pouco voluntariosa e em extremo determinada, fator que veio a demonstrar que conseguia aquilo que na realidade desejava.
Lembro-me de algumas peripécias da sua infância, na altura não muito divertidas mas que demonstram claramente o teor da sua personalidade.
Preparávamo-nos para sair a um ato inaugural e eu escolhi o vestido apropriado à solenidade, que ela devia envergar para me acompanhar. Não o entendeu ela assim. Desagradada, recusou-se a usa-lo. Insisti, explicando-lhe que o local aonde nos dirigíamos, era de cerimónia e não convinha apresentar-se como quem ia para a praia, ainda para mais, de boné na cabeça e sapatilhas, ao lado da mãe, com traje mais adequado ao evento. Não serviu de nada. A ideia fixa induziu-a a calar-se muito bem calada, pegar no vestido que eu escolhera e enfiar-se no quarto. Vendo que se demorava, fui ter com ela e fiquei nitidamente pasmada. Com uma tesoura tinha simplesmente cortado um pedaço ao tecido. E simplesmente ficou em casa porque, de castigo, não voltaria a cometer a mesma proeza.
Duma outra vez, estávamos todos a almoçar. Eurídice sentara-se em frente do avô. Sei que meu pai, pessoa sempre muito correta, envergava um fato especial para o seu passeio habitual dos domingos.
Tenho pena de não saber o que originou a reação da pequena que, de repente, pegando no talher e equilibrando o ovo estrelado que tinha no prato, o arremessou contra o peito do avô. Fora um desafio que acabou em não comer sobremesa.
Quando era castigada, acolhia-se às saias da avó que, compassiva e compreensiva também, dizia sempre:
- Perdoa a menina! Por esta vez!
E era sempre “por esta vez”.
Tudo quanto Eurídice é e tem, o deve a ela própria, ao seu esforço e trabalho, ao sentido do dever e orientação.
Entre Balança e Escorpião, gere os seus sentimentos, os seus valores morais e sociais, pondo como prioridades os interesses e necessidades da família.

Quando a ocasião se apresenta, toma atitudes drásticas. Não resisto a contar um episódio que ocorreu, já na largada para a idade adulta, uma cena que poderia ter custado a sua vida. Tenho a certeza que ela nem sequer pensou nisso.
Estávamos sentadas num apeadeiro. Àquela hora não havia ninguém. Ainda era cedo para o comboio regional. Todavia, o Expresso, que não pararia ali, não tardaria a passar.
Conversávamos naturalmente, quando uma rapariga, em adiantado estado de gravidez, apareceu a chorar e a pedir perdão a Deus e à Virgem Maria.
Entreolhámo-nos, surpreendidas e de sobreaviso. Ao longe, o comboio apitou.
Sem bem nos darmos conta do que estava a acontecer, vimos a jovem tirar os anéis, pousá-los num tronco de arbusto e rapidamente descer para a linha férrea e acocorar-se entre os carris, escondendo a cabeça entre as mãos.
Tudo passou num ápice. Vi Eurídice correr para a suicida e tentar puxá-la, procurando equilibrar-se entre os rails. Vi uma senhora correr para o local, espavorida.
A minha confusão foi tão grande que me imaginei de saltos pontiagudos, a pensar: Meu Deus, como posso salvá-las? Vou ficar entalada nas pedras e atrapalho mais do que ajudo.
A locomotiva assomou na curva. O maquinista deve ter-se apercebido e buzinou furiosamente. Gritei:
- Eurídice, sai daí!
Ainda hoje penso que houve a intervenção divina, um milagre, se preferir.
A rapariga deu a mão a Eurídice e, amparada por ela, subiu o parapeito no preciso momento em que a composição passava como um bólide.
Entretanto, o alpendre encheu-se de passageiros e muitos curiosos. Alguém, da janela de um prédio vira o sucedido e chamara a polícia que apareceu e recolheu a infeliz. E os seus anéis, símbolo possivelmente de alguma desilusão amorosa.
Mãe extremosa e dedicada, esposa exemplar, filha amorosa e brincalhona, Eurídice continua a ser o esteio da família, a “esteira magnética” por onde se filtram os frutos de uma árvore genealógica de que ela faz parte e reflete o brilho dos que foram seus antepassados e dos quais ela herdou as raízes eternas.
Parabéns, Lôlis!


5 comentários:

  1. Obrigada, minha mãe. Tenho tantas saudades desse tempo... muitas mesmo.
    Viva "eu", mas tenho de agradecer a Deus e à minha família por aquilo que sou e serei.
    Amo muito todos os meus familiares e guardo-os no cantinho especial no meu coração.
    Obrigada.

    Eurídice

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    1. Fico muito feliz por ti. Mereces o que conquistas e a vida premeia-te nas grandes e pequenas coisas cujo valor não tem peso nem medida.
      O tempo passa. A missão cumpre-se, conforme sabemos ou nos é permitido. Reconhecendo o bem que nos coube, há que sentir gratidão e paz interior
      Existe uma escultura de S. Jorge, patrono de Portugal. Os guerreiros portugueses, cristãos fervorosos, quando iniciavam as batalhas, lançavam o seu grito de guerra: “Por Santiago e S.Jorge”. Ora este santo está representado a cavalo, de lança em riste. Sob as patas do animal, ondeia uma serpente. Esta simboliza o mal que, metaforicamente, assim deve ser combatido. Com a energia do bem, a repulsa e a compaixão.
      Duma verdade tem a certeza: o teu passado foi bonito mas ele perpetua-se nas tuas duas belas filhas, prudentes e inteligentes. Revendo-te nelas, estás revivendo a história fascinante de uma “Eurídice no País das Maravilhas”.

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  2. A minha mana sempre com a sua força e a sua garra! És o nosso orgulho. Beijinhos.

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    1. Plenamente de acordo. Um bloco de cimento de guarda a um coração de manteiga, porque a vida magoa, fere, endurece. A vida?... Ou as pessoas que a fazem?... Sim, também tenho muito orgulho na Lôlis, uma vida inteira que abdicou dos seus sonhos para se dedicar ao agregado familiar que constituiu e, por afinidade, nunca esqueceu aquela árvore genealógica que a viu nascer e tem sido alvo da sua curiosidade e sentimento. Alma de eleição, o céu protege os eleitos.

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