Reflexão VI
“Eis-me aqui”
Hoje,
meu Senhor, no corredor do meu coração, pareceu-me ouvir-te chamar-me.
“Eis-me
aqui”.
Não
vou perguntar-te o que queres de mim. Sei de antemão. Tenho a presunção de
saber. É que hoje, as minhas reminiscências acudiram-me ao cérebro com uma
insistência inusitada, quase paradoxal.
E
nelas, interpretei o significado de uma infinita amorosidade que reverteu em
benefício dos meus alicerces espirituais.
Ultimamente,
tenho feito uma análise do meu passado, dos momentos críticos da minha
adolescência e depois o despertar de uma saga de emoções em que a dualidade do
amor foi uma constante definida por ti.
Guardo
a memória do côncavo da mão forte de meu pai quando nela enfiava o calcanhar do
meu pezito nu para o aquecer. Recordo o meu primeiro dia de aulas, a entrada
para a primeira classe onde, para estancar-me as lágrimas, me deram uma fatia
de pão com marmelada. Sempre que me sentia infeliz, ficava esfomeada.
A
minha atenção foi desviada para a frase que legendava a gravura exposta na
parede, em frente à minha carteira, frase essa que não mais esqueci: ”A união
faz a força”. Quantas vezes, ao longo da vida, desejei que fosse provada.
E
lembro o prato favorito que minha mãe me preparava com desvelo, sempre que eu
tinha de apanhar o comboio para Coimbra para as aulas de Artes Plásticas, um
bife suculento, muito mal passado e batatas fritas cortadas à mão, com uma
espessura tão fina como as batatas de pacote dos dias de hoje. Uma lição de
amor e paciência. A gargalhada fresca da avó ao contar-me as travessuras da
desfolhada. As minhas correrias, os joelhos esfolados e o medo da tintura. A
minha primeira ilusão amorosa.
Neste
feixe de recordações, alguma vez me lembrei de ti? Alguma vez te agradeci a
estabilidade e o remanso deste afluente da minha existência?
Mas
apelava ao teu auxílio nas horas de aflição; buscava em ti, a solução de todos
os meus problemas.
Eras
o Deus dos meus antepassados. Via-te através de um polígono multifacetado, de
uma extrema maleabilidade, um nome familiar presente nos nossos hábitos
religiosos, uma obrigação periódica ritualizada em práticas ancestrais e, acima
de tudo, a profunda devoção das mulheres que, na árvore genealógica da dos meus
parentes, te renderam preito sem tibiezas nem interrogações. Os tempos
passaram, entre dádivas e recusas, desilusões e regozijos, decisões e
letargias.
Mas
neste revolutear de águas complexas, as gotas de sal da minha esperança em ti
cristalizaram os sons da tua profecia.
Não
percebo se me encontro no fim de um caminho, no cume de uma ravina ou no dédalo
de múltiplas convicções. Sei, porém, que não soube interpretar os teus sinais e
por isso mesmo reconhecer as tuas advertências no momento crucial.
Hoje,
acorro ao teu chamamento. Deste-me a percepção das ofertas reais da tua Corte,
ao fazer-me compreender a existência dos raios de luz na escuridão, dos ardis
da ilusão ocultos num veludo de vozes enigmáticas.
Por
não sei que impulso, ouvi que me chamavas.
“Eis-me
aqui”.
Como
é diminuto o meu coração perante a tua fidelidade!
Como
a minha mente é pequena diante do teu conhecimento!
Mas
se esta tímida e insignificante criatura se curva em esboço do que devia ser e
não fui, devia fazer e não fiz, por tua misericórdia infinita, aceita tudo
quanto lhe deste.
Porque
nós, que julgamos saber tudo e tudo decidimos, só atribuímos valor às tuas
coisas quando as perdemos, pela falta que elas nos fazem.
Nos
dias de tenebrosa angústia, nos intervalos de venturas prometedoras, insurgi-me
contra a tua indiferença, atribui-te todas as culpas. Nos momentos eufóricos,
simplesmente, ignorei-te.
Por
que te vi da minha plataforma? E não considerei a imensidade do teu poder?
Hoje,
ouvi a tua voz. Lembrei-me da palavra “Ingratidão”.
Sinto-me
como um recém-nascido.
Como
pude transportar toda a minha vida sem perceber que vieste, tens vindo sempre
ao meu encontro?
E
ignorar esse ramo de gardénias que trazes contigo?
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