sexta-feira, 9 de março de 2018

Reflexão XX


A ausência de ruído é para mim como habitar um céu. A tranquilidade que se tem supera todos os estados de alma e conduz às profundezas do nosso interior onde encontramos a paz das reminiscências.
Nesse silêncio de ouro escutam-se todas as formas de harmonia e todos os sons melodiosos que nos é reconfortante relembrar para permanecerem ao nosso lado nesta caminhada ingrata da existência. Sem a evocação das suas figuras, dos seus gestos e expressões, do exemplo dos seus hábitos, estaríamos mais pobres, eu estaria mais pobre.
Muitas vezes visito essa galeria para iluminar um passado e fortalecer o meu ânimo, mantendo a presença desses ausentes numa memória ciosa de valores irrecuperáveis mas que são todavia como pulmões que respiram.
Aí está minha avó. Sei pelo meu diário, a data em que me deixou; tinha eu catorze anos. De pequena estatura, sempre sorridente, sempre vestida de preto, tinha uma cabeça de porcelana, cabelos de neve e faces rosadas de maçã camoesa.
Vejo o meu pai, sério, observador, cumpridor de regras, brincalhão amoroso com minha mãe e associo logo minha mãe, a seu lado, incansável na casa, inseparável, tranquila, servindo chá e biscoitos nos serões de convívio.
As cinco tias, cinco personalidades diferentes, que me inspiraram o conto Cintilação e tanto me divertiam como excitavam a minha curiosidade.
·        O meu professor do ciclo, que desenvolveu em mim a vocação para as Letras e aquele vulto, poderoso e gigante, garatujando nas suas viagens de comboio para a Gazeta e ouros periódicos da província. Imaginou sequer ter sido um forte incentivo para as minhas actividades literárias?
·        E chega o Mestre, professor de Artes Plásticas, mais tarde responsável pelos meus desenhos e o pintor de arte, francês, inspirador das minhas exposições aqui e no estrangeiro e na ilustração de diversas publicações.
·        Evoco ainda esse genial compositor musical que fez reviver o realejo através de partituras em cartão perfurado. Apenas existem no mundo quatro artistas como ele, cuja imagem faço avultar pelo trágico acidente que o vitimou.
·        A cantora, de gregoriano e seu marido, pianista e violinista, ele na sua cama de enfermo e ela, mais tarde, solitária e conformada, comendo as doze passas de Natal para fazer viver a tradição e mascarar a nostalgia.
·        Muitas mais personagens poderia citar, enriquecedoras mas não o comporta este espaço.
·        Fica ainda no começo este álbum das minhas memórias e a tristeza de não saber transformar o passado numa mágica realidade e não apenas guardar relíquias no sacrário de um coração que transborda de saudade.

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