A ausência de ruído é para mim
como habitar um céu. A tranquilidade que se tem supera todos os estados de alma
e conduz às profundezas do nosso interior onde encontramos a paz das
reminiscências.
Nesse silêncio de ouro
escutam-se todas as formas de harmonia e todos os sons melodiosos que nos é
reconfortante relembrar para permanecerem ao nosso lado nesta caminhada ingrata
da existência. Sem a evocação das suas figuras, dos seus gestos e expressões,
do exemplo dos seus hábitos, estaríamos mais pobres, eu estaria mais pobre.
Muitas vezes visito essa
galeria para iluminar um passado e fortalecer o meu ânimo, mantendo a presença
desses ausentes numa memória ciosa de valores irrecuperáveis mas que são
todavia como pulmões que respiram.
Aí está minha avó. Sei pelo
meu diário, a data em que me deixou; tinha eu catorze anos. De pequena
estatura, sempre sorridente, sempre vestida de preto, tinha uma cabeça de
porcelana, cabelos de neve e faces rosadas de maçã camoesa.
Vejo o meu pai, sério,
observador, cumpridor de regras, brincalhão amoroso com minha mãe e associo
logo minha mãe, a seu lado, incansável na casa, inseparável, tranquila,
servindo chá e biscoitos nos serões de convívio.
As cinco tias, cinco personalidades
diferentes, que me inspiraram o conto Cintilação
e tanto me divertiam como excitavam a minha curiosidade.
·
O meu professor do ciclo, que desenvolveu em
mim a vocação para as Letras e aquele vulto, poderoso e gigante, garatujando
nas suas viagens de comboio para a Gazeta e ouros periódicos da província.
Imaginou sequer ter sido um forte incentivo para as minhas actividades
literárias?
·
E chega o Mestre, professor de Artes
Plásticas, mais tarde responsável pelos meus desenhos e o pintor de arte,
francês, inspirador das minhas exposições aqui e no estrangeiro e na ilustração
de diversas publicações.
·
Evoco ainda esse genial compositor musical
que fez reviver o realejo através de partituras em cartão perfurado. Apenas
existem no mundo quatro artistas como ele, cuja imagem faço avultar pelo
trágico acidente que o vitimou.
·
A cantora, de gregoriano e seu marido,
pianista e violinista, ele na sua cama de enfermo e ela, mais tarde, solitária
e conformada, comendo as doze passas de Natal para fazer viver a tradição e
mascarar a nostalgia.
·
Muitas mais personagens poderia citar,
enriquecedoras mas não o comporta este espaço.
·
Fica ainda no começo este álbum das minhas
memórias e a tristeza de não saber transformar o passado numa mágica realidade
e não apenas guardar relíquias no sacrário de um coração que transborda de
saudade.
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