domingo, 2 de dezembro de 2012

SANTIAGO LEZCANO


2 de Dezembro de 1936

Ariège!
Conheci Santiago na bela e lendária província cátara de Ariège.
Todos os seus castelos, pontes levadiças, rios e muralhas falam de cavaleiros e pajens, alaúdes, senhores feudais cuja sombra guerreira se disfarça na vetustez das ameias.
Desde o primeiro momento do nosso encontro que Santiago me surpreendeu pelo seu rosto calmo, de expressão imperturbável, desafiando as horas como se as quisesse absorver e levar para dentro de si mesmo e, no seu íntimo, dar-lhe o ritmo da sua vontade.
Tinha um olhar tranquilo, introspectivo, de vigilantes expectativas quando espraiava a pupila pelo horizonte, recortado pelos píncaros dos Pirinéus. Dir-se-ia conciliar-se com o espaço, com o desconhecido, com mundos diferentes remexidos pela memória de escrínios e tesouros. Quando contemplava a prodigiosa paleta da natureza, das suas alvoradas ou dos seus poentes, dir-se-ia trazer a paisagem para dentro de si, mergulhando-a no abismo das próprias sensações, inacessíveis e cativas à apreciação de um leigo.
Dava a impressão de introvertido mas vogava em silêncios que só com ele falavam.
No período que passei em Pamiers que coincidiu com a sua estadia na casa-museu de seu irmão Francisco, mantínhamos diálogos prolongados e curiosos. Santiago interessava-se pela epopeia monárquica dos portugueses e pela sociedade moderna. De crítica analítica judiciosa, deixava a política para os irresponsáveis; para quem os actos não correspondiam às palavras.
Dominando a língua inglesa, dedicou grande parte da sua vida a escrever para revistas britânicas e a redigir ensaios e crónicas. O seu espírito acutilante distendia-se como uma quezília, mas não tinha a pretensão de endireitar o que já nascera torto.
Através da janela, lado a lado com o cortinado rendilhado, herança da família, o seu vulto adensava-se nos contornos do ocaso e não era raro pronunciar uma ou outra censura a um ruído, um grito, um buraco na calçada, fosse o que fosse, que perturbasse a ordem, a tranquilidade, o êxtase. Depois de ouvir o assunto do seu interesse e de fazer perguntas directas, contundentes, Santiago reentrava nos domínios do seu santuário interior. Em que pensava ele? Nunca lho perguntei.
A noite caía e nós despedíamo-nos das “pi ladronas”, pássaros policromos da linhagem dos corvos, irresistíveis glutões dos objectos que brilham.
A saudade que terás dos nossos passeios de braço dado, pelos jardins da Dama Branca, da nossa contemplação dos cisnes do lago, dos cozinhados dos teus inseparáveis “douradinhos”, a lembrança que desenharás de mim, das nossas conversas; a admiração que nutres pela arte de teu irmão e, sobretudo, o amor entranhado que sempre dedicaste a Carmem, essa bela senhora, tua mãe, fazem de ti um ser muito “sui generis” que fica gravado a bisturi no meu coração.


Celebrando hoje o teu aniversário natalício te dedico, meu especial Amigo, esta simples homenagem recolhida nos tempos tranquilos que passámos juntos, no sedutor rincão francês, o pequeno burgo de Pamiers.
Que os ventos de Portugal transportem até às ilhas Canárias, a forte e bonita amizade que sinto por ti e pela qual fui sempre retribuída. Assim o creio.
Ergo a minha taça e brindo com o champanhe do sentimento florescente das nossas almas, da minha, que grita:
Una hora bueña para ti, Santiago! Santiago querido!


Poema de Infância

Como diz o Poeta, como diz a Canção, “partir, partir, para os longes, de grande distância; depor no teu peito, poema de infância”.

É com este intróito que transcrevo o comovente texto, autêntico poema lírico que se segue, escrito para mim por Santiago.


A MEUS PAIS


Relembrando os dias da minha meninice, recordo com certa nostalgia a nossa primeira casa na rua Alonso Alvarado, um imóvel térreo dos anos 40, com estilo moderno, perto do adorável e denso parque de S. Telmo.
Meus pais levavam-nos, a mim, de quatro anos, e a meu irmão mais velho de seis, (o terceiro já a caminho), ao parque; algumas vezes, íamos todos juntos e outras minha mãe nos esperava sentada junto a uma mesa com laranjada e batatas fritas, dum certo estabelecimento, com estilo árabe, que atendia os clientes, ultimamente renovado com a mesma traça arquitetónica.
Às vezes, meu pai sentado, à espera da nossa chegada, se inquietava ao ouvir os pequenos aos gritos por “um Penny”, confundindo-o com algum anglo-saxão endinheirado, de pele morena e com 1,85 metros de altura.
Minha mãe, depois de nos acomodar nas cadeiras disponíveis, tratava de afastar os garotos com palmadas, como se de moscas se tratassem. O meu irmão experimentou dar uma patada, mas os meus pais o evitaram dando conselhos de bondade para com os menos favorecidos. À voz forte de meu pai dizendo: “comam estas batatas fritas”, os miúdos se foram desconcertados e confundidos.
À nossa mentalidade infantil, parecia-nos divertido subir as escadas para um sítio circular, onde havia uma fonte interior.
Quando vejo uma fotografia antiga dessa fonte, considero que se devia deixar onde estava e renova-la com uma barraca vendedora de refrescos e bebidas não alcoólicas, mas nos dias que correm já vende álcool, mas não a crianças.
Dando um salto no tempo, relembro os nossos dias de correrias em Tafira, vivendo num pequeno chalé comprado por meu pai, entre os anos 40 e 45. Ali nasceu o terceiro dos meus irmãos, que aos três anos gostava de cavalgar no dorso do fiel cão Pancho, diante da atenta vigilância do meu pai, mas não havia nada a temer, Pancho permanecia quieto como uma estátua, só se alterava se lhe coçavam a orelha.
Em certa ocasião, influenciado por um filme de piratas, visto no cinema “hollywood”, brincava agarrando, obstinado, com as duas mãos, uma espada de brinquedo, como um pirata. Advertindo-me, meu pai, em baixo no jardim, que as árvores são seres vivos e não devia danificá-las. Dizia minha mãe que era melhor ver as flores numa jarra do que cortar-lhes a cabeça.
Num dia, que se perde na minha memória, meus irmãos e eu com onze, nove e seis anos, brincávamos aos equilibristas e, enquanto me observavam, subi para a borda de um tanque de água para patos, situado na horta. Sobrevoava um avião a baixa altitude. Com um susto natural, perdi o pé, caindo estrepitosamente na água rodeado pelo grasnar das brancas aves. Minha mãe acudiu pressurosamente, tirando-me da água de um nível de 40 cms de profundidade.
Aos catorze anos, fiquei aprovado no exame de francês graças às leituras da minha mãe e meu pai ajudar-me-ia no inglês se não tivesse falecido.
Na nossa infância, meu pai escutava as notícias sobre o percurso da guerra com a Alemanha e não permitia nenhum barulho, então, prontamente ouvíamos as clássicas notas de Beethoven, antes de as notícias terminarem.


Com carinho, Aurorita Santy


Legenda da foto: Santiago, sentado no cadeirão de um bispo, na Catedral de Foix simbolizando um sonho efémero de grandeza.


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