2 de Dezembro de 1936
Ariège!
Conheci Santiago na bela e
lendária província cátara de Ariège.
Todos os seus castelos, pontes
levadiças, rios e muralhas falam de cavaleiros e pajens, alaúdes, senhores
feudais cuja sombra guerreira se disfarça na vetustez das ameias.
Desde o primeiro momento do nosso
encontro que Santiago me surpreendeu pelo seu rosto calmo, de expressão
imperturbável, desafiando as horas como se as quisesse absorver e levar para
dentro de si mesmo e, no seu íntimo, dar-lhe o ritmo da sua vontade.
Tinha um olhar tranquilo,
introspectivo, de vigilantes expectativas quando espraiava a pupila pelo
horizonte, recortado pelos píncaros dos Pirinéus. Dir-se-ia conciliar-se com o
espaço, com o desconhecido, com mundos diferentes remexidos pela memória de
escrínios e tesouros. Quando contemplava a prodigiosa paleta da natureza, das
suas alvoradas ou dos seus poentes, dir-se-ia trazer a paisagem para dentro de
si, mergulhando-a no abismo das próprias sensações, inacessíveis e cativas à
apreciação de um leigo.
Dava a impressão de introvertido
mas vogava em silêncios que só com ele falavam.
No período que passei em Pamiers
que coincidiu com a sua estadia na casa-museu de seu irmão Francisco,
mantínhamos diálogos prolongados e curiosos. Santiago interessava-se pela
epopeia monárquica dos portugueses e pela sociedade moderna. De crítica
analítica judiciosa, deixava a política para os irresponsáveis; para quem os
actos não correspondiam às palavras.
Dominando a língua inglesa,
dedicou grande parte da sua vida a escrever para revistas britânicas e a
redigir ensaios e crónicas. O seu espírito acutilante distendia-se como uma
quezília, mas não tinha a pretensão de endireitar o que já nascera torto.
Através da janela, lado a lado
com o cortinado rendilhado, herança da família, o seu vulto adensava-se nos
contornos do ocaso e não era raro pronunciar uma ou outra censura a um ruído,
um grito, um buraco na calçada, fosse o que fosse, que perturbasse a ordem, a
tranquilidade, o êxtase. Depois de ouvir o assunto do seu interesse e de fazer
perguntas directas, contundentes, Santiago reentrava nos domínios do seu
santuário interior. Em que pensava ele? Nunca lho perguntei.
A noite caía e nós despedíamo-nos
das “pi ladronas”, pássaros policromos da linhagem dos corvos, irresistíveis
glutões dos objectos que brilham.
A saudade que terás dos nossos
passeios de braço dado, pelos jardins da Dama Branca, da nossa contemplação dos
cisnes do lago, dos cozinhados dos teus inseparáveis “douradinhos”, a lembrança
que desenharás de mim, das nossas conversas; a admiração que nutres pela arte
de teu irmão e, sobretudo, o amor entranhado que sempre dedicaste a Carmem,
essa bela senhora, tua mãe, fazem de ti um ser muito “sui generis” que fica
gravado a bisturi no meu coração.
Celebrando hoje o teu aniversário
natalício te dedico, meu especial Amigo, esta simples homenagem recolhida nos
tempos tranquilos que passámos juntos, no sedutor rincão francês, o pequeno
burgo de Pamiers.
Que os ventos de Portugal
transportem até às ilhas Canárias, a forte e bonita amizade que sinto por ti e
pela qual fui sempre retribuída. Assim o creio.
Ergo a minha taça e brindo com o
champanhe do sentimento florescente das nossas almas, da minha, que grita:
Una hora bueña para ti, Santiago! Santiago querido!
Poema de Infância
Como diz o Poeta, como diz a Canção, “partir, partir, para os longes,
de grande distância; depor no teu peito, poema de infância”.
É com este intróito que transcrevo o comovente texto, autêntico poema lírico
que se segue, escrito para mim por Santiago.
A MEUS PAIS
Relembrando os dias da minha
meninice, recordo com certa nostalgia a nossa primeira casa na rua Alonso
Alvarado, um imóvel térreo dos anos 40, com estilo moderno, perto do adorável e
denso parque de S. Telmo.
Meus pais levavam-nos, a mim, de
quatro anos, e a meu irmão mais velho de seis, (o terceiro já a caminho), ao
parque; algumas vezes, íamos todos juntos e outras minha mãe nos esperava
sentada junto a uma mesa com laranjada e batatas fritas, dum certo
estabelecimento, com estilo árabe, que atendia os clientes, ultimamente
renovado com a mesma traça arquitetónica.
Às vezes, meu pai sentado, à
espera da nossa chegada, se inquietava ao ouvir os pequenos aos gritos por “um
Penny”, confundindo-o com algum anglo-saxão endinheirado, de pele morena e com
1,85 metros de altura.
Minha mãe, depois de nos acomodar
nas cadeiras disponíveis, tratava de afastar os garotos com palmadas, como se
de moscas se tratassem. O meu irmão experimentou dar uma patada, mas os meus
pais o evitaram dando conselhos de bondade para com os menos favorecidos. À voz
forte de meu pai dizendo: “comam estas batatas fritas”, os miúdos se foram
desconcertados e confundidos.
À nossa mentalidade infantil,
parecia-nos divertido subir as escadas para um sítio circular, onde havia uma
fonte interior.
Quando vejo uma fotografia antiga
dessa fonte, considero que se devia deixar onde estava e renova-la com uma
barraca vendedora de refrescos e bebidas não alcoólicas, mas nos dias que
correm já vende álcool, mas não a crianças.
Dando um salto no tempo, relembro
os nossos dias de correrias em Tafira, vivendo num pequeno chalé comprado por
meu pai, entre os anos 40 e 45. Ali nasceu o terceiro dos meus irmãos, que aos
três anos gostava de cavalgar no dorso do fiel cão Pancho, diante da atenta
vigilância do meu pai, mas não havia nada a temer, Pancho permanecia quieto
como uma estátua, só se alterava se lhe coçavam a orelha.
Em certa ocasião, influenciado
por um filme de piratas, visto no cinema “hollywood”, brincava agarrando,
obstinado, com as duas mãos, uma espada de brinquedo, como um pirata.
Advertindo-me, meu pai, em baixo no jardim, que as árvores são seres vivos e
não devia danificá-las. Dizia minha mãe que era melhor ver as flores numa jarra
do que cortar-lhes a cabeça.
Num dia, que se perde na minha
memória, meus irmãos e eu com onze, nove e seis anos, brincávamos aos
equilibristas e, enquanto me observavam, subi para a borda de um tanque de água
para patos, situado na horta. Sobrevoava um avião a baixa altitude. Com um
susto natural, perdi o pé, caindo estrepitosamente na água rodeado pelo grasnar
das brancas aves. Minha mãe acudiu pressurosamente, tirando-me da água de um
nível de 40 cms de profundidade.
Aos catorze anos, fiquei aprovado
no exame de francês graças às leituras da minha mãe e meu pai ajudar-me-ia no
inglês se não tivesse falecido.
Na nossa infância, meu pai
escutava as notícias sobre o percurso da guerra com a Alemanha e não permitia
nenhum barulho, então, prontamente ouvíamos as clássicas notas de Beethoven,
antes de as notícias terminarem.
Com carinho, Aurorita
Santy
Legenda da foto: Santiago,
sentado no cadeirão de um bispo, na Catedral de Foix simbolizando um sonho
efémero de grandeza.
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